"As ruas fervem em todo o Brasil. Jovens, e outros nem tanto, ocupam as cidades que o capital teima em tentar monopolizar para seu gozo exclusivo, exigindo transportes mais baratos e, cada vez mais, direito à livre manifestação. Com muito vinagre e fogo no lixão urbano, os manifestantes rebelados afrontam as bombas de gás, balas de borracha, e outras nem tanto, da repressão policial. Nos (tele)jornais, querem dirigir o que não puderam evitar, apresentando um vilão fantasmático: “a corrupção!”, para tentar desviar o foco da materialidade das contradições sociais que emergem com as centenas de milhares de pessoas nas ruas. Para eles, há os pacíficos e os vândalos. Bandeiras nacionais e hinos patrióticos representam a “verdadeira cidadania”, os partidos de esquerda seriam os “aproveitadores”. A linha é tênue, e varia conforme os humores dos manifestantes e as “sondagens de opinião”. Há quem, nas próprias manifestações, reproduza valores desse esforço ideológico para direcionar as mobilizações para a zona de conforto da classe dominante. Mas, os jornalistas dos monopólios da comunicação precisam se refugiar nos helicópteros e estúdios, porque sabem que a maioria ali não acredita no que dizem e nas ruas podem também ser brindados com o escracho dos que lutam. Lutam pelo que? O que explica a explosividade e a rapidez surpreendentemente desses acontecimentos? Aonde podem chegar? Qual o seu potencial? E os limites que precisam ultrapassar?" - Com esta breve introdução iniciamos nosso blog em junho de 2013. A luta continua e por isso este espaço continua aberto às analises!

sábado, 29 de junho de 2013

Manifestações massivas no Brasil têm origem na esquerda

por Roberto Leher, Professor da Faculdade de Educação da UFRJ



No dia em que mais de dois milhões de pessoas foram às ruas, 20 de junho de 2013, a cobertura das corporações da mídia foi exemplar sobre como os dominantes operam a dominação. A cobertura da GloboNews durou muitas horas, a exemplo do que ocorreu no dia 17 quando as manifestações tornaram-se de fato massivas. A filmagem, nos dois dias, basicamente se limitou a tomadas panorâmicas a partir de helicópteros com aproximações para focalizar um automóvel em chamas ou para acompanhar os chamados vândalos. A selvagem repressão das tropas da polícia treinadas por comandantes que estagiaram no Haiti – impondo um toque de recolher com angustiante semelhança com os do dia do Golpe de Pinochet, em 11 de setembro de 1973 – quase que era celebrado como um ato civilizatório frente à barbárie. As vozes dos manifestantes se restringiram a uns poucos minutos, não mais do que dez, e ainda assim respondiam a indagações sobre generalidades. De tempos em tempos, a voz de um dito especialista procurava explicar o que era de seu óbvio desconhecimento.

Na imprensa corporativa escrita, o mesmo aconteceu. Platitudes e falsificações. Nada sobre os movimentos, nenhum aporte histórico, nenhuma empiria, nenhuma análise. Em circulação, opiniões que buscaram “puxar a brasa para as sardinhas da ordem e da reação”, silenciando, por completo, as vozes que reivindicavam consignas radicais no curso das massivas manifestações: “passe livre”, “educação pública não mercantil”, “saúde não é mercadoria”, laicidade versus homofobia, “fora Fifa”, “contra a privatização do Maracanã”, “Fora Eike”, “Não às remoções”, isso sem contar um tratamento crítico à corrupção que ultrapassa a questão moral, por exemplo, em cartazes que associavam o interesse das corporações na especulação imobiliária, os megaeventos e as isenções, repasses e empréstimos bilionários aos investidores operados pelos governos Dilma (PAC/BNDES), Sérgio Cabral e Eduardo Paes (os dois últimos, no Rio de Janeiro), levando milhares de manifestantes a bradar: “Da Copa eu abro mão, mas não da saúde e educação” – públicas. A respeito dessas consignas, não há como lutar contra a mercantilização das citadas questões vitais sem ser anticapitalista!

É certo que outros sentidos circularam nas manifestações. E foram justo estes os metonimicamente hiperdimensionados pela mídia que, por meio de insistentes e sistemáticas repetições, tomou a parte pelo todo: (i) consignas nacionalistas “verás que o filho teu não foge à luta” de fato estavam presentes, mas de modo polissêmico. Bandeiras do Brasil podiam refletir o clima da “pátria de chuteiras” propagandeado pelos governos e pela grande mídia (como ocorreu de modo preocupante na Alemanha, por ocasião da última Copa); (ii) contra a corrupção, em geral associada à defesa contra a PEC-37, como se o núcleo temático das forças que convocaram a multidão fosse o natimorto movimento “Cansei”, patrocinado por frações burguesas decadentes e em franco processo de desidratação econômica e política, e (iii) mais complexa e enigmática, as manifestações contra os partidos (e violentamente contra os de esquerda socialista), estimuladas pela mídia, em nome da suposta participação cidadã, reunindo sujeitos que ainda precisam ser melhor caracterizados –  milícias vinculadas aos partidos de direita, aos empresários das empresas de transporte, agentes da repressão infiltrados, grupúsculos neonazistas (com ligação com torcidas organizadas, por exemplo). Um sentimento antipartidário difuso de jovens de classe média ecoou no apoio aos ataques sobre os militantes. Com efeito, os partidos da ordem concorreram para tal sentimento. O infrutífero abaixo-assinado contra Renan Calheiros na presidência do Senado, reunindo mais de 1,2 milhão de assinaturas, o entusiasmo por Joaquim Barbosa no processo de julgamento do chamado “mensalão”, processo de corrupção congruente com o Estado particularista, mas interpretado como uma quebra de confiança na esfera privada, a traição, e o descrédito nas organizações coletivas, engolfadas pela cooptação e pelo transformismo, tornando-as desprovidas de relevância social, concorreram para a difusão desses sentimentos. Na versão da grande mídia, foram os conservadores os verdadeiros responsáveis pelas convocações, eclipsando os sujeitos que, a partir da esquerda, possibilitaram a deflagração do movimento.

O presente texto não tem a pretensão de explicar as multitudinárias manifestações. Existe muito a ser investigado, analisado e restará muito a explicar, motivando, por muitas décadas, estudos de diversos prismas. As grandes lutas sociais são assim: surpreendem, desconcertam, mas não são ‘raios em céu azul’ como querem fazer crer as corporações que controlam os principais meios de comunicação, inclusive os principais blogs de apoio ao governo federal.

Para compreender o recente movimento de massas no Brasil, é importante distinguir analiticamente duas dimensões do protesto social para, a seguir, pensá-lo como totalidade. Um primeiro plano é a convocatória. Quais os movimentos (e pautas) que tiveram capacidade de, por meio das redes sociais, convocar as manifestações? O pressuposto é que existem sujeitos organizados em torno de um ou de vários movimentos que discutiram e consensuaram a realização das manifestações. O segundo nível é a análise dos que atenderam a convocatória, assumindo-a como sua, empenhando-se em sua divulgação e, sobretudo, tomando a decisão de comparecer. Será que são sujeitos que finalmente despertaram para os problemas e para a importância da manifestação política ou, alternativamente, são sujeitos com diferentes formas de inserção em causas sociais e que, por determinados motivos, como a brutal repressão policial em São Paulo, a ineficácia dos abaixo-assinados via internet e o recrudescimento da inflação real compreenderam que a hora era de ir às ruas?

Compreendendo a convocatória

Para não incorrer no erro criticado, busco examinar inicialmente os sujeitos que realizaram a convocatória do que pode ser considerado o estopim das manifestações: o abusivo preço das passagens de ônibus, cujo Grito (nos termos de J. Holloway (1)) foi difundido pelo Movimento do Passe Livre (MPL), colocando brevemente em relevo as formas de organização, suas alianças, suas formas de luta, suas consignas e o modo como suas reivindicações são recepcionadas pelos governos. Pretendo, a seguir, esboçar proposições para tornar pensáveis o acolhimento das convocatórias por parte de um imenso contingente que, até o momento, ainda não havia protagonizado um movimento de massas.

O estudo, ainda preliminar, é uma má notícia para os “intelectuais” a soldo dos jornalões e das televisões. O exame das lutas no período 2004-2012 registradas no Observatório Social da América Latina (OSAL (2)), infelizmente encerrado em 2013, permite concluir que o movimento que vinha empunhando a luta contra as tarifas extorsivas que serviu de deflagrador das grandes manifestações em curso no país possui origem na esquerda e, mais do que isso, as manifestações não existiriam sem a esquerda. O MPL, embora autônomo frente aos partidos, é de esquerda e interage com os partidos de esquerda (3). Ao longo da década de 2000, empreendeu lutas com sindicatos e movimentos sociais e tem objetivos afins aos que empreendem lutas no mundo do trabalho.

Outra má notícia está dirigida aos pós-modernos encantados com as redes e com os novos movimentos sociais. O MPL, desde sua origem, faz lutas “a quente” nas ruas, lutas que frequentemente foram ferozmente reprimidas pelo aparato repressivo.

Finalmente, o movimento, ao recusar o vanguardismo e sua expressão organizativa, o substitucionismo, praticados por partidos socialistas, não é antissocialista e, por conseguinte, anticlassista. Ao contrário, compõe uma forma de pensar e praticar a política que há muito está presente nas lutas antissistêmicas latino-americanas, a exemplo dos Zapatistas, do movimento estudantil que promoveu a célebre Ocupação da UNAM (México, 1999) por longos 10 meses, das Lutas da Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca – APPO (2006), das lutas do movimento Pinguim no Chile (2006) e dos levantes da juventude pela educação pública no Chile, em 2012-2013 e as ocupações das reitorias pelos estudantes das universidades federais em 2006, assim como a ocupação da USP em 2007.

A matriz político-organizativa das referidas manifestações guarda similaridades com o movimento Zapatista, não devendo ser confundida, entretanto, com as formulações anarquistas (4). Muito de suas formas de agir e pensar foram sistematizadas por John Holloway em seu importante livro Mudar o Mundo sem Tomar o Poder (2002), obra que, mesmo que não seja diretamente indicada como de referência do movimento, influenciou movimentos afins, difundindo um certo modo de fazer política.

O MPL vem se configurando como um dos mais imaginativos e interessantes movimentos da juventude. Recusa a tutela externa, faz avaliações de conjuntura próprias (em assembleias livres), mantém uma estrutura organizativa horizontalizada, pratica a rotatividade dos portavozes e representantes, empreende ações diretas e aborda um problema real para os jovens, a mobilidade urbana e o péssimo serviço de transporte, caro e ineficiente, e que toca profundamente os setores da classe trabalhadora mais pauperizados e explorados, que sentem no bolso o saqueio das tarifas exorbitantes. Assim, embora muitos de seus participantes sejam provenientes das classes médias, encontraram um meio de interagir com os trabalhadores mais duramente explorados.

Já em junho 2004, antes de sua formalização, demonstrou notável capacidade convocatória em Fortaleza, quando reuniu 5 mil manifestantes contra o aumento de tarifas. A resposta, em Fortaleza, foi a habitual: 15 feridos por balas de borracha e 40 detidos. A intolerância com as bandeiras do MPL deve-se aos laços orgânicos entre as empresas de transporte e os governos. O que pode ser mais pedagógico para ensinar aos jovens do que o modo como os governos saem em defesa das empresas? Em janeiro de 2006, o MPL realizou uma manifestação que mobilizou cerca de 500 pessoas no Distrito Federal (DF) contra o aumento de 20% nas passagens do transporte urbano. O governo mobilizou mil policiais do Batalhão de Operações Especiais (BOPE), da cavalaria e um helicóptero. O movimento cresceu, estendendo-se por três dias, ampliando o arco de forças na luta, abrangendo movimentos que, em geral, não participavam das lutas estritamente partidárias e sindicais, como, Radicais Livres, Anarcopunk, Hip Hop, Arte e Educação, a Associação de Skatistas do Paranoá, aos quais se somaram movimentos já inseridos em lutas classistas, como o Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), o MST e os Diretórios Centrais de Estudantes (DCEs) da Universidade de Brasília (UNB) e do Centro de Ensino Unificado de Brasília (CEUB).

Desde então, as lutas contra os aumentos organizadas pelo MPL se espalharam no país, havendo concentração em Santa Catarina (Joinville e Florianópolis), São Paulo (Campinas e capital), Brasília, Salvador e, por meio de outras formas de organização, em centenas de cidades pelo país.

As suas pautas enfatizam temas que sugerem a busca de aliança com os setores da classe mais explorados (passe livre para setores sem renda). Recusando a tese de que o poder está em toda parte e em nenhum lugar, ao gosto dos defensores da Multidão, como Hard e Negri (Império), o MPL identifica os loci do poder político formal, priorizando as suas representações locais (expresso em ocupações de prefeituras e câmaras de vereadores, na defesa da municipalização do transporte coletivo) e nomeia as empresas que exploram o transporte, enfrentando os conluios destas com as prefeituras (defendendo a investigação das contas das empresas de transportes e denunciando as isenções e calotes tributários e os repasses de verbas do poder público).

Também distintamente do que apregoam os pós-modernos, o MPL defende as alianças com a classe trabalhadora organizada. Exemplos simbólicos desses gestos precisam ser apontados. Em agosto de 2007, o MPL de São Paulo lançou carta de apoio ao direito de greve dos metroviários, reivindicando transporte público gratuito e de qualidade. Na carta, o movimento apoiou a greve dos metroviários, a legitimidade de suas reivindicações e fez diversas críticas à privatização da Linha 4 e à posição adotada pelo Metrô frente à greve dos trabalhadores: “A administração do Metrô insiste em afirmar que a greve dos metroviários deixa sem transporte milhões de pessoas, quando na verdade o alto preço da tarifa e o limitado sistema metroviário é que exclui grande parte da população do acesso aos trens do Metrô”.

O movimento reivindica a história e as lutas dos que resistiram no passado: em 7 de setembro de 2008, o MPL realizou manifestação durante o desfile do Dia da Independência em Joinville, lembrando a época da ditadura militar. Um dos integrantes, o estudante Kleber Tobler, 25 anos, foi preso por usar farda militar e uma máscara de demônio. Em maio de 2010, estiveram à frente do protesto "Churrascão da Gente Diferenciada" contra a desistência do governo do estado de São Paulo de construir uma estação de metrô na avenida Angélica, atendendo aos reclamos dos moradores do bairro da alta classe média que não desejava o metrô: “Eu não uso metrô e não usaria. Isso vai acabar com a tradição do bairro. Você já viu o tipo de gente que fica ao redor das estações do metrô? Drogados, mendigos, uma gente diferenciada...”. Demonstrando solidariedade aos sete trabalhadores mortos no desabamento causado por negligência da empresa que fazia a obra da estação da Linha 4-Amarela do Metrô, em Pinheiros, o MPL esteve no protesto junto com o Sindicato dos Metroviários de São Paulo (2010).

Igualmente, em junho de 2010, o MPL apoiou a Marcha da Liberdade que reuniu mais de 3 mil pessoas, na capital São Paulo. O protesto foi pela liberdade de expressão e contra a repressão policial, reunindo simpatizantes de diversas causas, como os favoráveis à legalização da maconha, e os defensores dos direitos de gays, lésbicas e transexuais. Para um dos organizadores do movimento, André Takahashi, a marcha conseguiu alcançar seus principais objetivos. “A Marcha da Liberdade já cumpriu o seu papel que é o de começar essa discussão sobre a liberdade de expressão e o uso das armas não letais. O emprego de armamento não letal fere a Constituição quando usado contra pessoas que estão no seu direito de se manifestar”. A Marcha da Liberdade também foi importante para promover a interação entre os diversos movimentos sociais. Segundo militantes do MPL, existe uma “tendência” de que essa troca de experiências e cooperação continue.

Em suma, o breve apanhado de algumas das ações políticas do MPL parece confirmar mais a sua proximidade com as lutas latino-americanas das últimas décadas do que com o pós-modernismo e, radicalmente distinto dos novos movimentos sociais que recusam alianças classistas com os movimentos organizados da classe trabalhadora. A recente convocatória do MPL para novas mobilizações na periferia de São Paulo (5), organizada em conjunto com o MTST e outros movimentos, como o Periferia Ativa, corrobora o posicionamento classista do movimento.

Argumentar que a convocatória deflagrada pelo MPL – e pelos movimentos que nos últimos cinco anos têm construído a unidade de ação nas lutas pelo passe livre e contra os abusivos aumentos das passagens – tem seu esteio na esquerda, guarda nexos classistas e possui considerável relação com outros movimentos da juventude, sindicatos e movimentos sociais e partidos, não equivale a afirmar que a enorme massa que compareceu aos atos após a feroz repressão policial do governo Alckmin com o aval de Fernando Haddad no ato do dia 13 de junho, ferindo jornalistas, espancando centenas e prendendo 137 pessoas, contou apenas com a presença de apoiadores ativos do MPL. Mas, sem o referido movimento, as convocatórias para os atos que culminaram nas grandes marchas não teriam acontecido no momento.

Os que compareceram

Os diversos atos e manifestações foram rotulados pela grande mídia como “Rebeldia e Vandalismo”, “Marcha da Insensatez”, “Manifestantes queimam ônibus, depredam bancos e lojas em SP” (O Globo, 12/6/13), “Riscos de novos confrontos: atos do Movimento Passe Livre, que provocaram quebra-quebras no Rio e em SP, serão repetidos hoje” (O Globo, 13/6/13). Contudo, o tom mudou após a feroz repressão, levando um importante colunista da FSP e de O Globo, Elio Gaspari, a publicar artigo com o título: “A PM começou o conflito” (O Globo, 14/06/13), reconhecendo, afinal, que os confrontos foram impulsionados pela selvagem repressão do aparato policial que, como destacado, há anos vinha reprimindo duramente os atos do MPL.

A indignação contra a insana repressão – afinal reconhecida pela mídia – repercutiu sobre um público muito maior do que o círculo do MPL. A ele se somou movimentos que já vinham demonstrando iniciativa política, como o movimento LGBT (mas sobretudo o movimento em prol do casamento homoafetivo e contra a eleição do deputado Feliciano à Presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados), os que se manifestaram na rede contra o Código Florestal desde 2011, os militantes empenhados nas lutas contra as remoções em virtude dos negócios imobiliários da Copa, em solidariedade aos Guarani-Kayowa em Mato Grosso do Sul, a enorme greve dos Servidores Públicos Federais em 2012. Especificamente, no Rio de Janeiro, é preciso acrescentar os que lutaram a favor da Aldeia Maracanã, contra os custos abusivos e a privatização do Maracanã, os que apoiaram ativamente a greve dos bombeiros, as dezenas de milhares de pessoas que compareceram à Marcha crítica à Rio + 20, movimentos que, no plano partidário, possibilitaram que o candidato do PSOL, Marcelo Freixo, obtivesse quase um milhão de votos na cidade, campanha protagonizada fundamentalmente por estudantes.

Entretanto, não apenas motivações com cariz de esquerda levaram muitos outros milhares às ruas nos dias 17 e 20/6. Qualquer observador pode concluir facilmente que esse enorme contingente é polissêmico, plural, mas dificilmente poderia ser desvinculado de causas e mobilizações que vêm acontecendo nos últimos anos. Proposições potencialmente conservadoras (não pelo mérito da questão, mas pelo enfoque), como o “Fora, Renan” e a comoção do julgamento do dito “mensalão”, tornando o ministro do STF, Joaquim Barbosa, uma espécie de justiceiro em prol da moralidade pública, também demonstraram força e, rapidamente, foram sintetizadas nas consignas “corrupção, PEC-37, antipartidos” pela grande mídia corporativa como as verdadeiras (e essenciais) causas da mobilização que levou mais de meio milhão de pessoas às ruas no dia 20/6 no Rio de Janeiro, manifestações que se espraiaram por todo o país e geraram solidariedade em dezenas de países. Está em aberto a disputa pela imagem das manifestações e, mais do que isso, pelo seu teor!

Algumas sínteses

A reversão de expectativas otimistas na economia, pressionando o poder de compra da maioria da população, em particular da endividada parcela da classe trabalhadora indevidamente denominada de “classe C”, contribuiu para sincronizar o Brasil na crise mundial do capitalismo.

A necessidade de ofensiva dos governos, em especial do Federal, de interceder mais vivamente nos acontecimentos, levou a presidenta Dilma a fazer um pronunciamento em cadeia nacional focalizado nos temas da corrupção, do transporte e vagamente dos direitos sociais à educação e saúde, não sem fazer ameaças aos “baderneiros” e, por silenciar, dando aval ao uso feroz do aparato repressivo, inclusive mobilizando a Força Nacional de Segurança (6). Imediatamente, todos os portavozes do Estado Maior do capital saíram a público para comemorar o estupendo discurso presidencial que, afinal, colocou as coisas em seu devido lugar. Um destes portavozes explicitou o que, afinal, é o fulcro da questão:

Para a presidente Dilma, o pior que pode acontecer numa campanha eleitoral antecipada é ser envolvida em uma tentativa de levar para a esquerda radical uma classe média que em alguma medida ela estava conseguindo cooptar (7).

Para corroborar a necessidade de união de todos com o Estado Maior do capital, os intelectuais e propagandistas do governo ecoaram a tese do Golpe da Direita que estaria em marcha nas ruas (justificando a tese da união nacional, governos instituídos, empresários, movimentos sociais, centrais sindicais etc., em defesa da democracia), conferindo um poder que os grupelhos fascistas não dispõem. O que faltaria a essa ultra-direita? Em primeiro lugar, lastro em uma classe social fundamental que disponha de relevância econômica. Mas inexistem no Brasil frações burguesas relevantes que estejam fora do bloco de poder gerenciado pelo PT. Outra possibilidade seria que, mesmo sem estar amparado pelo poder econômico do imperialismo, existisse, digamos, uma direita ideológica militante e ativa. O quase desaparecimento do DEM, por meio do deslocamento de suas principais lideranças rumo à base do governo do PT (com a criação do PSD por J. Bornhausen, G. Kassab e Kátia Abreu) não valida tal avaliação. Na Europa, essa direita é nutrida pelo sentimento xenófobo, situação não verificada no país.

Assim, o verdadeiro motivo que impulsiona a tal união nacional é o afastamento dos manifestantes das ruas e da agenda da crise capitalista: desemprego, perda de poder aquisitivo, inflação, precarização do serviço público advindo dos sucessivos e bilionários cortes no orçamento do Estado, novas privatizações, leilões de bacias petrolíferas etc.

É essa a frente de luta que está colocada diante dos movimentos da classe trabalhadora, como salientou Mattos (8). O desafio é fortalecer o protagonismo dos movimentos sociais, dos partidos de esquerda, do movimento autonomista classista, da juventude, assegurando ao movimento em curso um teor classista, mas nem por isso submetido ao controle de forças externas ao movimento vivo da classe, à liderança de guias carismáticos, à estruturas de comando verticalizadas etc. O conceito de democracia direta e protagônica, dos mandatos rotativos e revogáveis, forjado na Comuna de Paris, nos sovietes, no poder popular da APPO (Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca), nada tem de incompatível com a construção ativa de consensos capazes de orientar a luta diante das forças poderosas da contrarrevolução.


Notas:

1) . John Holloway Agrietar el capitalism: el hacer contra el trabajo. Bs.As.: Herramienta, 2011.
3) .  Para compreensão do MPL que se aproxima do presente texto, embora com nuances, ver Bruno Paes Manso e Marcelo Godoy, Antiliberal e crítico do marxismo, MPL usa multidão como arma, http://a-voz-das-ruas.blogspot.com.br/2013/06/antiliberal-e-critico-do-marxismo-mpl.html
4) . Carlos Beas Torres, La batalla por Oaxaca. Oaxaca, México: Ed. Yope Power, 2007.
5) Quem não luta pelos trabalhadores, não nos representa. Ato agendado para o dia 25/6/13 no Capão Redondo e no Campo Limpo, Zona Sul, Guaianeses, zona Leste.
6). Edição do dia 20/06/2013 Tropas da Força Nacional reforçarão a segurança de quatro capitais Fortaleza, Salvador, Rio de Janeiro e Belo Horizonte terão apoio da Força Nacional durante a Copa das Confederações. http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2013/06/tropas-da-forca-nacional-reforcarao-seguranca-de-quatro-capitais.html

Roberto Leher é doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenador do Observatório Social da América Latina – Brasil/ Clacso e do Projeto Outro Brasil (Fundação Rosa Luxemburgo).

Publicado originalmente em http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=8543:submanchete270613&catid=72:imagens-rolantes








Antimperiomidiatíco - O Levante - 2013

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Duas estratégias: Unir a esquerda para avançar as mobilizações, ou para proteger o governo Dilma?

por Valério Arcary


Todos juntos nessa luta pela unidade popular,
Mas, se estamos todos juntos,
contra quem vamos lutar?

Versos cantados por delegados da esquerda socialista  no Congresso da UNE, em resposta à moção que defendia a estratégia de unidade da toda a oposição à ditadura militar, sob a liderança da burguesia liberal que se expressava através do MDB de Tancredo e Montoro, contra a unidade operária- estudantil.




Os ataques dos fascistas contra a esquerda produziram uma reação extraordinária durante a última semana. A defesa do direito da esquerda de ir às ruas levantando suas bandeiras vermelhas uniu muitos milhares de jovens nos últimos dias, por todo o país, em uma mobilização unitária, entusiasmada, e lúcida.

                          A unidade da esquerda nas ruas foi emocionante
      As fotos da assembléia-monstro no Largo São Francisco no Rio de Janeiro para preparar o dia 27 e a ida ao Maracanã no dia da final da Copa emocionaram a esquerda, profundamente, em todo o Brasil. Processos semelhantes se repetiram, em formas variadas, mas com o mesmo conteúdo, em Belo Horizonte, Porto Alegre, Fortaleza, Belém, e Recife, entre muitas outras cidades menores. Surgiu do enfrentamento do dia 20 de junho com os fascistas um poderoso sentimento fraterno de que precisamos nos unir para vencer. Isso foi amgnífico.
       Estamos diante da urgência da política. Os dias agora valem por meses, as semanas por anos. Tudo se acelerou. O debate aberto na esquerda pelas mobilizações das últimas três semanas coloca na ordem do dia um dilema: a esquerda precisa se unir para poder ajudar o movimento da juventude a avançar na direção de novas vitórias, sob pena de perder uma oportunidade histórica de transformação do Brasil. Uma janela de oportunidade que não se abre com facilidade. A divisão da esquerda repercutirá de forma dramática sobre as possibilidades da luta em curso, porque está aberta uma disputa sobre o destino do combate de milhões. Esses milhões estão em luta porque têm pressa.
                         Um debate de estratégia é incontornável
      Não obstante, isso não deve nos inibir de dizer que, infelizmente, existem dois grandes campos políticos na esquerda, hoje no Brasil, que remetem a um dilema de estratégia, e que vai se expressar em polêmicas táticas de todo o tipo. Estes campos têm diferenças irreconciliáveis.
   Sendo assim, é melhor debater as estratégias. Porque é mais educativo. As questões mais de fundo, que remetem ao tema da atitude diante do poder, são inescapáveis. As diferenças não são artificiais, não são produto de exageros sectários. Não são pequenas escaramuças, miúdices, picuinhas, . Estes campos são maiores que os partidos de esquerda. Porque são muitas dezenas de milhares de ativistas que se interrogam sobre qual deve ser o caminho a seguir. A imensa maioria não têm militância partidária. Comprendem a gravidade da situação. Têm boas razões para estar preocupados.

                                  Dois campos em disputa
       Em um campo estão aqueles que compreendem que a mobilização pelas reivindicações deve avançar, tendo a prioridade de unificação com os trabalhadores, ou seja, a preparação de um dia de greve geral para 11 de julho. Este campo afirma que para lutar contra os os empresários do transporte urbano, os banqueiros, os fazendeiros do agro-busness, a FIESP, não é possível dar trégua a nenhum governo.
       A nenhum significa isso mesmo, a nenhum, nem a Dilma. Depois de dez anos, ficou claro que os governos liderados pelo PT em aliança com partidos burgueses estão mais comprometidos com a preservação do pagamento da dívida pública, do que com os transportes públicos, a educação e saúde públicas. Sem romper com o pagamento da dívida pública, de onde viriam as verbas para os investimentos necessários à implantação, por exemplo, do passe livre?
       Os que nos colocamos nesta posição queremos ajudar a juventude nas ruas a continuar ocupando as avenidas com as reivindicações que ela mesma foi forjando pela sua experiência prática: conquistar o passe livre, desmilitarização das PM’s, mais verbas para educação e saúde, punição dos corruptos. E queremos agregar as reivindicações que respondem às necessidades do proletariado: o aumento dos salários e a redução da jornada de trabalho, por exemplo, ou a anulação da reforma da previdência, e a suspensão dos leilões de privatização do petróleo do pré-sal, e tantas outras.
      Os termos do dilema, que é sempre uma escolha difícil são, portanto, terríveis, mas claros: Dilma está disposta a romper com o PMDB? Porque atrás do PMDB estão as empreiteiras com contratos milionários para a construção das grandes obras e estádios, por exemplo. E a esquerda que apoia o governo, ainda que criticamente, como as várias tendências internas do PT, o PCdB, a Consulta Popular, ou o MST, se Dilma não atender às reivindicações, e não romper com o PMDB e os ouros partidos burgueses, estão dispostas a romper com Dilma?
       Em outro campo estão aqueles que consideram que é preciso unir a esquerda para defender o governo Dilma, porque o maior perigo seria a desestabilização do governo liderado pelo PT, ou até do regime democrático. Estão, podemos admitir, comprometidos em fazer exigências ao governo Dilma. Exigências para que Dilma abra negociações com as reivindicações das massa em luta. Exigências para que o PT no governo não capitule diante do PMDB de Michel Temer e Sérgio Cabral. Ou exigências para que o PT fora do governo não capitule aos ministros do PT que aconselham moderação a Dilma. Em resumo, estão engajados em  pressionar o governo Dilma, mas não estão dispostos a romper com ele. E reafirmam que não era possível antes de junho, e continua não sendo possível, mesmo depois de milhões nas ruas, construir uma esquerda à esquerda do governo Dilma.
      
                                      É preciso lutar, é possível vencer
     Qual estratégia é o melhor caminho para vitórias populares? Qual estratégia irá prevalecer? Qual dos dois campos tem uma melhor apreciação do que está em disputa, e a melhor orientação para transformar o Brasil? Seria estupendo, realmente, fantástico, se as mobilizações de jovens e trabalhadores fossem o bastante para exercer uma pressão de classe suficiente para impor uma frente única de toda a esquerda. Essa é a vontade dos ativistas, é a vontade de todos os que sabemos contra quem lutamos. Porque para vencer, o mais elementar é saber contra quem lutamos. Saber quem são os amigos e quem são os inimigos.
      Infelizmente, nunca é assim. A pressão das lutas não é o bastante. Outras pressões políticas que, em uma interpretação de classe, respondem a pressões das classes inimigas dos trabalhadores se abatem, também, sobre a esquerda. Diante de grandes acontecimentos, ensina a experiência histórica, algumas correntes de esquerda, que mantinham posições muito distantes umas das outras, se aproximam. E outras, que estavam próximas, se afastam. Em outra etapa da vida política brasileira se apresentou, dramaticamente, o mesmo dilema para a esquerda. Com quem nos unirmos, para lutar contra quem? Ou, enunciando de outra maneira, independência ou colaboração de classes?
A polêmica do final dos anos setenta e início dos oitenta
     Em 1979/79, quando uma nova situação se abriu no Brasil, colocou-se um problema de estratégia política chave. Qual deveria ser a orientação para acelerar a derrota da ditadura militar? Estava ficando cada dia mais claro, depois das greves metalúrgicas do ABC, das greves de professores, de bancários e outros setores da classe trabalhadora, que era possível construir nas ruas uma mobilização de massas para derrotar a ditadura. A classe dominante estava, crescentemente, dividida, entre uma maioria que aceitava a abertura lenta e gradual, ou seja, uma transição para um regime democrático-eleitoral negociada com os militares, e aqueles que resisitiam, porquee temiam, em função do medo das classes populares, a ampliação das liberdades democráticas. As classes médias tinham rompido, majoritariamente, com o regime. A classe trabalhadora começava a se mexer e a ganhar confiança em sua capacidade de luta.
    A esquerda que vinha se fortalecendo nas lutas estudantis e na reorganização do movimento dos trabalhadores se dividiu em dois campos. De um lado, principalmente, o PCB, o PCdB, o MR-8, defendendo a unidade das oposições. O que significava que o monopólio da liderança política na luta contra a ditadura ficava nas mãos do PMDB. Ninguém deveria disputar com Ulysses e Tancredo a condição de porta voz das oposições. Acontece que a liderança do PMDB temia mobilizar as massas contra a ditadura, e aceitava o calendário eleitoral imposto por Geisel e Figueiredo. O PMDB não estava disposto a mobilizações de massas, porque sabia que o perigo era a entrada em cena dos trabalhadores, com sua força social de choque, seus métodos e suas greves. E o PMDB era um partido com apoio, essencial e primeiramente, empresarial.
    No outro campo estava a esquerda que se uniu em torno do projeto que nasceu das greves operárias, e das manifestações estudantis, e levou à fundação do PT em 1980, e da CUT em 1983. Este campo se posicionava contra uma transição negociada, e lutava pela derrubada da ditadura, não por uma transição negociada. Lutava pela perspectiva de um deslocamento da ditadura pelas lutas, não em conchavos no Congresso Nacional. O PMDB era o partido da oposição institucional, o PT era o partido da independência dos trabalhadores, que não aceitava que a maioria proletária continuasse a ser massa de manobra entre diferentes alas da classe dominante. Os moderados de esquerda argumentavam exatamente como agora: não é possível ultrapassar Ulysses e o PMDB pela esquerda. A luta provou que eles estavam errados. Foi porque o PT chamou às ruas e começou a campanha das Diretas já no Pacaembu que o PMDB, ainda que dividido se mexeu. O drama atual é que a maioria daqueles que foram os radicais em 1980/83, agora são os moderados. De incendiários, viraram bombeiros.
    O dilema de estratégia que se coloca agora, trinta e cinco anos depois, no entanto, é o mesmo. O papel da esquerda deve ser o de ajudar a juventude e os trabalhadores a construir um campo independente? Ou ela deve se resignar a ser um vagãozinho atrelado ao trem que é dirigido por uma ala da classe dominante contra outra ala? Só podemos escolher entre o governo Dilma ou um governo da direita? Ou esta onda de lutas pode ajudar a nova geração a retirar conclusões políticas e ir além? Não é possível pensar em um poderoso campo de oposição de esquerda, que permita ir além do reformismo quase sem reformas dos dez anos dos governos Lula e Dilma? Qual o caminho para avançar na direção da revolução brasileira?