por Marcelo
Badaró Mattos
“And then the
bullhorn crackles,
And the
captain crackles,
With the
problems and the how's and why's.
And he can
see no reasons
'Cause there
are no reasons(...)
“Que tempos
são esses, quando
falar sobre
flores é quase um crime.
Pois
significa silenciar sobre tanta injustiça?”
“Já se sentem
no ar os cheiros da primavera”
Segunda-feira,
17 de junho de 2013, Rio de Janeiro, Brasil. Centenas de milhares de pessoas
foram às ruas em diversas cidades de todo o país na tarde/noite de hoje. Muitas
ainda estão pelas ruas quando escrevo estas linhas. No Rio de Janeiro foram
mais de 100 mil manifestantes, a enorme maioria deles(as) jovens, mas também
alguns(mas) veteranos(as) de tempos em que passeatas dessas dimensões eram mais
comuns. Outras(os) tantas(os) em São Paulo, muitas(os) em Belo Horizonte,
Salvador, Belém, Porto Alegre, Maceió e várias outras cidades. Em Brasília, a manifestação
ocupou o teto do Congresso Nacional, como nas “Diretas Já”, em 1984, ou nos
protestos contra a “reforma” da previdência de Lula da Silva, em 2003.
Brasileiros(as) espalhados(as) pelo mundo, em mais de 50 cidades europeias e da
América do Norte, foram às ruas ontem e hoje, para sentirem-se parte deste
mesmo movimento.
Por que? Faz
uns 15 dias que as manifestações começaram, São Paulo como epicentro, tendo
como reivindicação imediata a reversão do reajuste das passagens do transporte
público. À frente dos protestos, o movimento pelo passe livre, que já completa
cerca de uma década e é capitaneado pelos estudantes. Seus/suas protagonistas
são estudantes universitários(as) e secundaristas, alguns(mas) organizados(as)
em partidos e movimentos de esquerda, mas outros(as) reativos(as) às formas
organizativas tradicionais e muitas(os) sem qualquer referência desse tipo,
vestindo máscaras de anonymous (do
filme/quadrinho V de vingança),
paradoxalmente combinadas a bandeiras do Brasil. Mas, lá também estavam
muitos(as) trabalhadores(as) descontentes com o preço das passagens e com muito
mais. O que mais?
Estamos em
tempos de ensaio de copa do mundo, com a tal copa das confederações. Muita
gente foi “despejada” (como se gente fosse dejeto mesmo) de suas casas, sob a
justificativa de que novas vias tinham que ser abertas para a tal copa, as
olimpíadas (e a valorização do solo urbano...). E quem vai e volta do trabalho
todo dia em conduções superlotadas, gastando horas extras não remuneradas
nesses trajetos, não vê nenhuma melhora em sua vida depois disso, pelo
contrário. Mas, vê os governos isentando as empresas privadas do setor
rodoviário de impostos e ainda assim aumentando as passagens para garantir
lucros elevados. “Da copa eu abro mão, quero dinheiro pra saúde e educação”,
cantam os/as manifestantes. Tudo isso em época de hipervalorização dos preços
dos imóveis urbanos e dos aluguéis, aumentos generalizados dos custos da
alimentação e de outros gastos essenciais para a manutenção da sobrevivência.
Não há porque estranhar as vaias para Dilma.
Podemos,
porém, avaliar que há algo mais por trás desse rápido despertar das
mobilizações de massa. Um caminho para tanto é localizar quais são os
principais alvos das manifestações. Nos telejornais, especialmente do maior
grupo empresarial monopolista das comunicações no Brasil (a Rede Globo),
cujos(as) repórteres tem que se manter distantes e anônimos(as) para não serem
hostilizados(as) pelos(as) manifestantes, percebe-se enorme dificuldade em
manter a linha editorial de alguns dias atrás, que classificava as primeiras
manifestações como baderna e vandalismo. Agora se veem obrigados a baixar o tom
e reconhecer o caráter de massa dos movimentos. Isso porque os monopólios das
comunicações são um dos alvos mais evidentes das manifestações. As pessoas
reagem, ainda que de forma contraditória em alguns momentos, contra o que
percebem ser um instrumento claro de imposição de “consensos” em torno de
valores que lhes são estranhos, quando não hostis, de pacificação dos conflitos
a partir da valorização da repressão e da conformação à ordem dominante.
O outro
centro do descontentamento expresso pelas mobilizações é a repressão policial.
Não seria errôneo avaliar que o rápido crescimento do número de pessoas nas
ruas registrado hoje pode ser atribuído a uma reação contra a violência da
polícia – especialmente a paulistana – na repressão aos atos da última semana.
Atos contra o reajuste das passagens hoje foram ampliados como atos em defesa
do direito de manifestação. Alguns dizem que a polícia cometeu excessos, outros
afirmam que ela é despreparada. Se equivocam, ou querem confundir. O simples
fato de que o Estado brasileiro manteve polícias militares, mesmo após o fim da
ditadura, já deve ser tomado como fator explicativo para muita coisa. E não é
despreparo o que os policiais demonstram quando atiram a queima roupa em
manifestantes – eles foram treinados para fazer isso todos os dias nas favelas
e periferias das grandes cidades (com a diferença de que lá as balas não são de
borracha...). Estão também habituados a aplicarem essa força repressiva contra
todos os movimentos da classe trabalhadora que ousem ir além do papel de claque
dos governantes.
Em suma, os
alvos aparentemente secundários (cada vez mais primários) dos protestos contra
os reajustes das tarifas – os monopólios de mídia em seu esforço incessante por
moldar corações e mentes aos desígnios da ordem do capital e o braço
policial/repressivo de um Estado que nunca abdicou de sua face mais dura, na
contrarrevolução permanente que caracteriza a autocracia burguesa no Brasil
(para lembrarmos Florestan Fernandes) – indicam uma novidade estimulante das
manifestações em curso. Elas prenunciam uma possibilidade de ampliação do
dissenso, um clima de levante latente, contra as duas faces mais fortes, que
combinadas trabalham para a contenção da luta de classes e caracterizam a
dominação burguesa na atualidade brasileira: a imensa rede de aparelhos de
criação de consensos e o, nunca desmontado / sempre incrementado, aparato de coerção
repressiva.
Claro, para
que esse potencial se transforme em uma efetiva onda de mudanças é preciso
muito mais. É preciso que a geração de 40/50 anos que foi às ruas nos anos 1980
para exigir as “Diretas Já!” e o fim da ditadura, assim a geração dos 35/40,
que no início da década de 1990 pintou a cara para bradar “Fora Collor”, voltem
às ruas ao lado de seus filhos, para lutar por transformações profundas. E como
cresceria o movimento se sindicatos e centrais convocassem seus filiados para
pararem o trabalho e engrossarem as próximas manifestações. E se sem-tetos,
sem-terras, atingidos pelo mega-eventos, cercados pelos caveirões e UPPs,
cerrassem fileiras num só coro dos descontentes. E se os partidos de esquerda,
especialmente os que ainda acham que o Congresso Nacional é o palco das grandes
lutas, acordassem para a centralidade das ruas. E se um programa coerente de
reivindicações antissistêmicas demonstrasse claramente que as tarifas sobem, a
polícia bate e a mídia faz coro porque assim funciona a sociabilidade do
capital nesta nossa grande periferia “emergente”.
Cabe a nós plantarmos agora, no asfalto das ruas, essas
flores da primavera brasileira, pois o inverno já dura demais nestes trópicos
ensolarados.
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