"As ruas fervem em todo o Brasil. Jovens, e outros nem tanto, ocupam as cidades que o capital teima em tentar monopolizar para seu gozo exclusivo, exigindo transportes mais baratos e, cada vez mais, direito à livre manifestação. Com muito vinagre e fogo no lixão urbano, os manifestantes rebelados afrontam as bombas de gás, balas de borracha, e outras nem tanto, da repressão policial. Nos (tele)jornais, querem dirigir o que não puderam evitar, apresentando um vilão fantasmático: “a corrupção!”, para tentar desviar o foco da materialidade das contradições sociais que emergem com as centenas de milhares de pessoas nas ruas. Para eles, há os pacíficos e os vândalos. Bandeiras nacionais e hinos patrióticos representam a “verdadeira cidadania”, os partidos de esquerda seriam os “aproveitadores”. A linha é tênue, e varia conforme os humores dos manifestantes e as “sondagens de opinião”. Há quem, nas próprias manifestações, reproduza valores desse esforço ideológico para direcionar as mobilizações para a zona de conforto da classe dominante. Mas, os jornalistas dos monopólios da comunicação precisam se refugiar nos helicópteros e estúdios, porque sabem que a maioria ali não acredita no que dizem e nas ruas podem também ser brindados com o escracho dos que lutam. Lutam pelo que? O que explica a explosividade e a rapidez surpreendentemente desses acontecimentos? Aonde podem chegar? Qual o seu potencial? E os limites que precisam ultrapassar?" - Com esta breve introdução iniciamos nosso blog em junho de 2013. A luta continua e por isso este espaço continua aberto às analises!

quarta-feira, 24 de julho de 2013

A oposição entre esquerda e direita no Brasil após junho de 2013



"O recuo em vinte centavos no aumento da tarifa do transporte rodoviário é apenas um dos inúmeros exemplos de que somente a luta coletiva muda a vida em sociedade. Para quem está aberto a conhecê-la e a vivenciá-la, essa descoberta imprime marcas indeléveis nas consciências e corações".


foto: Cris Miranda
por João Augusto de Andrade Neto, doutorando do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ).



Os recentes acontecimentos no Brasil trazem de volta para a cena de uma forma requalificada oposições que nunca desapareceram da sociedade e que para muitos aparecem ainda travestidas em expressões políticas falsas, reduzidas ao jogo eleitoral de uma maneira mentirosa e distorcida. Mais de dez anos de governo de um partido oriundo da esquerda política e social, o Partido dos Trabalhadores, representado pelos governos Lula e Dilma, criaram um perverso quadro em que no senso comum esquerda passou a representar o mesmo que direita. O raciocínio é simples e as massas não estão de todo equivocadas, ao menos num nível superficial. Para chegar ao poder, os partidos de esquerda tiveram que se aliar às classes dominantes, se corrompendo e reproduzindo as mesmas práticas que sempre condenaram. Uma vez gerindo o Estado, o projeto político do PT impôs uma radicalização no desenvolvimento capitalista, sob a chave do desenvolvimentismo associado às políticas de ajuste macroeconômico neoliberais. Se a esquerda ao assumir o Estado mostra que governa e age de forma muito semelhante à direita, quando não idêntica, sendo quase que completamente subserviente aos interesses da burguesia nacional e internacional, como esperar que outra fosse a opinião da maioria das pessoas?

As manifestações nas ruas vêm abalando fortemente os equilíbrios no quadro da luta de classes na sociedade brasileira, o reconfigurando. Cada vez mais se tende a um acirramento das posições políticas e à polarização da sociedade, opondo as visões de esquerda às de direita: respectivamente, a defesa da igualdade, da justiça e do respeito à diferença, contra a defesa da propriedade privada, da reprodução das desigualdades sociais e até, numa leitura mais conservadora e menos liberal, do preconceito e da discriminação contra “minorias”. Ganha espaço e visibilidade neste contexto a oposição entre a lógica do público e da defesa do social em confronto com a lógica do privado e da defesa dos interesses econômicos particularistas.

Remoções, grandes eventos desportivos, visita do Papa, máfia dos transportes, caráter militar e truculento da polícia, corrupção, ausência de um sistema de saúde e de educação públicos e de qualidade, dentre outros temas que emergiram no debate de forma mais intensa nos últimos dois meses, apontam para muito mais do que uma crise moral na política: indicam a falência do atual modo de organização da sociedade. Em tempos de pujança econômica no Brasil e de prevalecência de um modelo de desenvolvimento violador dos direitos humanos e concentrador da riqueza, as ruas se encontram cheias de pessoas questionando a forma como a sociedade se organiza politicamente e o fato de que esta organização via de regra favorece aos interesses de uma minoria e desfavorece a imensa maioria da população. Atônitos, muitos se perguntam como pôde acontecer a atual explosão de manifestações. Ninguém entende bem o porquê das sucessivas mobilizações multitudinárias e os fatores que foram determinantes para que ocorressem. No entanto, é consenso que sobram motivos para se protestar por um país mais justo e socialmente desenvolvido.

A oposição entre esquerda e direita, que para alguns soa erroneamente como um maniqueísmo ou simplificação da realidade, representa de fato uma dicotomia existente na sociedade e na política. No campo da esquerda estão aqueles que creem na igualdade social como um valor fundamental para a humanidade, um objetivo superior a ser perseguido. No campo da direita está quem defende que a desigualdade social é natural ao ser humano, o que serve como uma forma para justificar o assombroso fato de que poucas pessoas detêm tanta riqueza enquanto tantos têm tão pouco.

A visão limitada da política presente no senso comum que tende a igualar esquerda e direita em termos meramente partidários e eleitorais pode no atual momento histórico ser posta em cheque, na medida em que se redescubra que tal oposição transborda para além da esfera da política representativa: está na sociedade e figura em cada ato, cada opinião, cada expressão. Não se trata apenas de uma questão de partidos eleitorais desfigurados pelo modo torpe de funcionamento da estrutura política, mas sim de visões de mundo e do modo como se age em sociedade e de quais interesses se defende. Do ponto de vista subjetivo, trata-se de reconhecer de qual lado se está nas lutas que estão sendo travadas e de cerrar fileiras junto a quem assume semelhantes posições – fenômeno este que pode ser chamado de politização da sociedade.

Recuperando os eventos recentes no Brasil, podemos pensar em como a oposição entre esquerda e direita emerge na sociedade, fornecendo matrizes de discurso e de ação para os indivíduos e grupos. Entre os principais eventos recentes, chama a atenção o fato de que as mesmas pessoas que se compadecem e se indignam por causa de algumas vidraças quebradas no Leblon por razão dos excessos das massas revoltosas são incapazes de se solidarizar com os mortos pela ação genocida da Polícia Militar na Favela da Maré, em que aproximadamente uma dezena de pessoas foi chacinada, e com o desaparecimento de Amarildo, que foi sequestrado pelos policiais da Unidade de Polícia Pacificadora na Rocinha, onde vivia e foi confundido pela polícia com um "bandido".

Como pode a violência contra as classes populares ser aceita com tanta naturalidade, enquanto o protesto contra o governo e o Estado que a praticam é tratado como um grave problema social a ser combatido de forma truculenta? A cada vez em que se consente de maneira explícita ou tácita com o assassinato de gente do povo e a cada vez em que se faz coro junto com a grande mídia golpista e as forças da repressão contra quem está nas ruas se manifestando, se perde um pouco mais em termos de humanidade: a cada vitrine defendida e a cada trabalhador morto ignorado as pessoas se tornam menos humanas. Cada declaração de apoio à defesa intransigente da propriedade privada e dos privilégios de classe representa ao mesmo tempo um golpe na tão frágil condição humana.

Entretanto, esse processo de perda da humanidade é consequência e não causa. Em cada ação de apoio às vitrines do Leblon e em cada silenciamento sobre a morte de quem mora em favelas está embutido um juízo de valor referido a um ponto de vista de classe social: se reforça a adesão à visão de mundo e aos interesses da burguesia, isto é, dos grandes empresários, banqueiros, industriais, financistas e latifundiários, que são beneficiados pela manutenção da ordem social desigual. Por meio do poderoso instrumento forjador de opiniões que é a mídia, pelo controle das leis e da educação formal, esses interesses são impostos como se fossem universais, como se representassem a toda a sociedade. Em realidade, trata-se dos interesses de um limitadíssima parte da sociedade, os quais acabam sendo defendidos de forma quase irracional pela classe média e inclusive por segmentos das próprias classes populares, atentando contra os seus próprios interesses.

A visão de mundo dominante, construída historicamente pela burguesia e seus aparelhos ideológicos, representa o fruto de processos anteriores de dominação no campo das ideias políticas e visões de mundo. Essa dominação se reatualiza, por exemplo, quando se acredita e se reproduz as informações divulgadas por meio da cobertura que a Rede Globo faz sobre os protestos populares. Raramente são questionados pelo cidadão comum os processos pelo qual são moldadas as opiniões que ele próprio emite. A Globo, com seu enorme poder de alcance e com livre acesso às residências e mentes da maioria da população, forja mentiras e mostra aspectos da realidade de maneira tendenciosa, de modo a tentar preservar a ordem desigual que beneficia aos segmentos da classe burguesa, aos quais representa. Cada manifestação nas ruas oferece uma ameaça à ordem social injusta na qual vivemos e quem dela se beneficia não deve facilmente aceitar mudanças que impliquem na perda de poder. Neste sentido, o uso da violência através da coerção física e o uso da dominação ideológica por meio da tentativa de produção de consensos são e deverão ser cada vez mais utilizados de maneira ostensiva.

As pessoas em geral não têm o costume de parar para pensar criticamente no que realmente está acontecendo na sociedade e na política e habitualmente não refletem sobre suas próprias posições políticas de forma objetiva. Em muitos casos, sequer têm elementos para fazê-lo, pois as informações a que têm acesso estão impregnadas pelo viés ideológico e manipulador da grande mídia, que representa a principal fonte de informações e formadora de opiniões para a imensa maioria da população. Por isso, no atual momento histórico todos têm a oportunidade e o dever de colocar em questão as formas de dominação ideológica, fazendo a batalha não apenas nas ruas, mas também no campo das ideias, discutindo, divulgando informações e propagando opiniões divergentes em relação àquelas presentes no senso comum.

As diferentes formas de violência contra as classes populares estão sendo alvo de protestos como não se via há muito tempo. Quem assiste ou participa das manifestações das massas está sendo tocado e mexido de tal forma pela experiência que é forçado a se posicionar: De que lado ficar? É legítimo protestar? Por que o povo tem ido tanto às ruas? Em quê desembocará todas essas manifestações e até quando conseguirão as pessoas se manter nas ruas em protesto? Estas são algumas das questões que não saem das bocas e mentes das pessoas comuns.

Quando imaginaríamos que toda a sociedade brasileira seria chamada a discutir os problemas sociais de forma tão viva e contundente, vivendo e pensando a política nas ruas e no cotidiano e buscando romper com o sequestro da política imposto pelo corruptos mecanismos de representação eleitoral instituídos? Até dois meses atrás quem poderia dizer que a juventude e os trabalhadores se uniriam aos moradores da Rocinha para fazer um protesto no Leblon, um dos bairros mais caros para se viver do mundo, questionando não apenas o Governo de Sérgio Cabral no Rio de Janeiro, mas a própria estrutura do Estado capitalista e seu viés violento, assassino e corrupto?

Cada item da pauta de lutas presente nas ruas representa o desferimento de um golpe na lógica de funcionamento do capitalismo: ser contra a corrupção significa, de fato, questionar a promíscua relação entre o poder econômico e o poder político, existente no capitalismo desde seus primórdios. Gritar contra a colossal injeção de recursos em eventos como as copas, as olimpíadas e a vinda do Papa não significa senão a rejeição de um modelo de cidade excludente, voltado aos ricos, que remove pobres de suas moradias e das ruas e faz com que os bairros das zonas centrais e altamente valorizadas da cidade cada vez mais pertençam apenas àqueles que têm alto poder aquisitivo, incluindo neste processo as favelas “pacificadas”. Gritar contra um governante tem o papel de apontar não apenas os defeitos morais do mesmo, mas fundamentalmente de negar o modelo de políticas públicas e a forma de gerir a máquina estatal, que privilegia uma minoria e deixa a maior parte da população num estado miserável. Mas a corrupção dos governantes e servidores públicos só existe porque o poder econômico atua ativamente os subornando e produzindo uma lógica de trocas clientelistas que representam o avesso do que deveria ser a democracia e, neste sentido, a crítica se volta também à própria estrutura política estabelecida.

Ecoam na esfera pública de forma pungente as disparidades gritantes de um sistema que não encontra outra solução senão sua destruição e a reconstrução da forma de organização da sociedade. Este é o significado fundamental para o qual devem ser direcionados os gritos “por um Brasil melhor”. A destruição do velho é conclamada como forma de abrir caminho para um novo país: é uma destruição criadora. Na contramão deste sentido revolucionário, as pessoas que manifestam posições políticas de direita reagem violentamente e a cada dia mostram mais que estão a serviço de uma campanha truculenta em defesa da propriedade privada, da manutenção das desigualdades sociais e da falta de respeito para com as diferenças socioculturais. Quando segmentos da sociedade a impelem a mudanças num sentido progressista e democratizante, quem se posiciona politicamente de forma conservadora costuma ser taxado como reacionário justamente por isto: pelo fato de reagirem contra o avanço de possíveis processos de transformação social.

Os defensores de posições do campo político da extrema-direita costumam ser chamados vulgarmente de fascistas, não porque de fato assumam essa ideologia de maneira consistente, em sua imensa maioria, mas porque seu conservadorismo e reacionarismo evocam elementos das ideologias fascistas. O projeto político fascista propõe a supressão da diversidade, o extermínio de quem é, vive, pensa e age diferente, e busca, acima de tudo, assegurar a ordem capitalista de forma autoritária. Por ora, sabemos que os defensores conscientes dessa ideologia no Brasil são uma ínfima minoria de pequenos grupos de neonazistas e integralistas. Mas existe sempre o risco de que cresçam, ameaçando as conquistas sociais e o ainda incipiente processo de democratização da sociedade. Por isto, todo cuidado é pouco.

Enquanto o ponto de vista da esquerda afirma a luta pela garantia de fato de direitos a todos os cidadãos, para além da “letra morta” da formalidade legal, quem defende os posicionamentos de direita costuma instrumentalizar a lei para garantir privilégios pessoais, negando direitos às classes populares e desrespeitando a diversidade social e cultural. As pessoas que assumem práticas de direita tendem, de forma consciente ou inconsciente, a atuar a serviço da negação do acesso a direitos humanos para o outro, o que produz ao mesmo tempo a desumanização de si próprios. Mesmo aqueles que se situam no campo da direita liberal e mantêm uma retórica de defesa dos direitos, aparentemente menos conservadora e mais progressista, encontram como limite efetivo para a democratização da sociedade a contradição que opõe aqueles que são proprietários dos meios de produção e das riquezas em geral à imensa massa de trabalhadores que destes bens são desprovidos. Enquanto houver relação de exploração do homem pelo homem e o trabalhador for forçado a vender sua força de trabalho para um patrão para fins de sobrevivência, sempre existirá a desigualdade no acesso a direitos. Como consequência, sempre haverá classes minoritárias numericamente que serão “mais livres” do que as classes majoritárias, comandando o Estado e os rumos da sociedade de modo a garantir o injusto status quo.
 
Para aqueles que assumidamente são de esquerda e que representam as forças progressistas da sociedade, defendendo os interesses das classes populares, vive-se um prolongamento da mobilização de quem nunca adormeceu. Por outro lado, quem "desperta" para a política agora traz consigo todo um enorme acúmulo de indignação, que começa a ser canalizado para ações coletivas. Estamos assistindo a um crescente reconhecimento de que o poder da sociedade consubstanciado em movimentos coletivos tem capacidade transformadora. Esse reconhecimento vem acompanhado da adoção de formas de ação e discursos que trazem o novo para os cidadãos. Um novo que é fruto da experiência vivida e ainda embrionariamente alvo de reflexão. Trata-se de um novo ainda pouco compreendido, promissor no potencial de mudança de consciências e de politização. Um novo que por enquanto é muito mais vivido e sentido do que consubstanciado em consciência política e na adesão a um projeto alternativo de sociedade. O recuo em vinte centavos no aumento da tarifa do transporte rodoviário é apenas um dos inúmeros exemplos de que somente a luta coletiva muda a vida em sociedade. Para quem está aberto a conhecê-la e a vivenciá-la, essa descoberta imprime marcas indeléveis nas consciências e corações.

Neste momento, uma difícil e complexa tarefa está colocada: a conquista das massas para um projeto político radical de transformação da sociedade, para uma guinada à esquerda, no sentido da generalização da efetivação de direitos e da redistribuição da riqueza de modo mais igualitário. Ser de esquerda significa assumir tais princípios como o eixo central de reivindicações no sentido da construção de um mundo novo. O fim da corrupção do poder público, bandeira tão mencionada nas recentes manifestações, e a mudança deste modo desigual e violento de organização da sociedade só poderão ser alcançados com a instituição de uma nova sociedade fundada sobre outras bases econômicas, culturais e políticas. Está em jogo a luta por uma sociedade na qual o ser seja mais valorizado do que o ter, em que os interesses da maioria prevaleçam sobre os privilégios de uma minoria, em que a democracia direta e participativa efetivamente descentralize o poder e o distribua de forma mais igualitária entre os cidadãos.

Os princípios que orientam esse projeto político vêm de uma longa tradição política dos trabalhadores organizados em luta contra o capital, que remonta ao século XIX. A arena em que se desenrolam os embates entre o povo e a burguesia é chamada de luta de classes: uma luta que opõem aqueles que detêm os poderes econômico e político aos trabalhadores, estudantes, camponeses, indígenas, negros, aposentados e tantos outros sujeitos das classes populares. A esquerda propõe como alternativa democrática ao capitalismo a construção de uma sociedade socialista. Socialismo é o nome do projeto político que há muito as forças sociais capitalistas vêm tentando apagar da história, especialmente nos últimos 40 anos com o desenvolvimento do chamado neoliberalismo em todo o mundo. Mas as lutas sociais e políticas pressionam para que o projeto de uma sociedade autogerida pelos trabalhadores seja recolocado em cena, suprimindo a existência da divisão entre classes dominantes e classes dominadas na sociedade.

Não se trata de apresentar um modelo pronto e acabado de organização da sociedade. Neste sentido, a luta pelo projeto do socialismo não se confunde com os resultados das experiências históricas que já existiram em alguns países, as quais tenderam para o desvirtuamento do caráter democrático inerente à proposta. O socialismo é um processo de construção coletiva em aberto, cujos rumos dependem da atuação de quem nele participa. Liberdade e democracia direta são valores centrais para a construção do socialismo e ao mesmo tempo representam a garantia contra formas autoritárias e burocratizadas de organização política, assegurando a horizontalidade nas relações.

Vivemos um momento ímpar que pode proporcionar que outro projeto político de sociedade ganhe força na disputa com o atual modelo capitalista. A responsabilidade histórica está nas mãos de todos que estão nas ruas, novos e velhos manifestantes, debatendo e se organizando para reivindicar direitos. Para quem coloca seu corpo e sua mente à serviço da mudança social no sentido da democratização plena da sociedade não há tempo a perder ou para sentir medo. Conquistar corações e consciências para a causa da transformação social é uma das principais tarefas colocadas para se atingir o horizonte da mudança. Organização, mobilização e trabalho de base são os meios que estão sendo recuperados na prática social e política para se tentar alcançar esse objetivo.

Decerto, o Brasil não voltará a ser o mesmo que era antes de junho de 2013. O futuro do país está, mais do que nunca, nas mãos do seu povo, que tem o dever de se organizar e lutar em prol dos interesses coletivos, dos bens comuns do meio ambiente, da defesa do que é público, contra a privatização da vida, contra a injustiça social e a falta de respeito à diversidade. Quem compartilha desses ideais e busca formas para exercê-los na prática está próximo a uma visão de mundo da esquerda, quer saiba, quer não. Semelhante argumento vale para o caso daqueles que reproduzem ideias e práticas de direita, que podem estar se posicionando no campo político liberal e/ou conservador, mesmo sem ter plena consciência disto e do quê isto significa de fato. Saber se definir politicamente é fundamental para ter clareza sobre com quem se compartilha semelhantes ideias e opiniões, sobre junto a quem se pretende estabelecer alianças e para saber como formar sua própria opinião de um ponto de vista reflexivo. Num contexto em que todos são conclamados a se posicionar perante os fatos políticos que representam as manifestações populares nas ruas, uma velha e inquietante pergunta emerge novamente com força, incitando o debate e a autorreflexão: De que lado você está?

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Conjuntura no Brasil pode desembocar em crise revolucionária

Yasuyoshi Chiba/AFP: PM atira em manifestantes em Fortaleza

É a conjuntura, estúpido



por José Arbex Jr., especial para o Viomundo em 17/07/2013



“Seria mais fácil explicar os protestos quando eles ocorrem em países não democráticos, como no Egito e na Tunísia, em 2011, ou em países onde a crise econômica elevou a índices assustadores o número de jovens desempregados, como na Espanha e na Grécia, do que quando eles ocorrem em países com governos populares e democráticos – como no Brasil, que atualmente exibe os menores índices de desemprego de sua história e uma expansão sem paralelo dos direitos econômicos e sociais. Muitos analistas atribuem os recentes protestos à rejeição da política. Creio ser precisamente o contrário: eles refletem o desejo de ampliar o alcance da democracia, de encorajar as pessoas a participarem de uma maneira mais plena.”
O diagnóstico é feito pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, em artigo de sua autoria, publicado no jornal estadunidense The New York Times (clique aqui para ler), em 16 de julho. Lula está certo. Os jovens que tomaram as ruas querem mais do que aquilo que já têm.
O desejo se reflete na palavra de ordem “queremos escolas (e hospitais, postos de saúde, serviços públicos) com padrão Fifa”. A alusão à Fifa não é um aspecto secundário das manifestações.
Ao contrário: mostra que, no Brasil contemporâneo, o próprio circo pegou fogo. Estamos a um milhão de anos luz do inglório 1970, quando a conquista do tricampeonato mundial deu fôlego à ditadura em sua fase mais sangrenta, sob as botas do general Emílio Garrastazu Médici.
Embalados pelos inestimáveis serviços prestados ao regime pela Rede Globo, os brasileiros cantavam o hino oficioso “90 milhões em ação / pra frente Brasil / do meu coração”, enquanto agentes da ditadura torturavam e assassinavam nos presídios oficiais e nas masmorras clandestinas.
Já não é assim. “Fifa”, hoje, virou sinônimo de imperialismo, e “Copa do Mundo” de corrupção, mamata e desperdício do dinheiro público.
Não por acaso, as sedes da Globo em São Paulo e no Rio foram objeto de repúdio dos manifestantes.
Mesmo Pelé teve que vir a público explicar que sua majestade nada tinha contra as “jornadas de junho”, após o seu apelo patético, gravado em vídeo, para que todos esquecessem as manifestações e apoiassem a seleção, durante a Copa das Confederações.
“Pelé calado é um poeta”, respondeu o ex-jogador e atual deputado federal Romário, que denuncia a imensa farra com o erário possibilitada pela Copa de 2014 e pelos Jogos Olímpicos de 2016.
Os tempos, pois, são outros. Um claro sinal disso é dado pela seguinte comparação: em 1995, a heroica greve dos trabalhadores brasileiros do petróleo, iniciada em 3 de maio,  morreu melancolicamente, 32 dias depois, sem ter logrado atrair a solidariedade ativa do movimento sindical e da sociedade, abrindo o caminho para Fernando Henrique “Thatcher” Cardoso impor todas as reformas que pretendia ao mundo do trabalho; quase exatos 18 anos depois, no início de junho, um pequeno grupo intitulado Movimento pelo Passe Livre, convoca atos para protestar contra o aumento de 20 centavos no preço do transporte urbano, em algumas das principais cidades do país, para detonar um movimento que acabaria levando pelo menos 2 milhões às ruas. É isso que deve ser explicado: porque, em 1995, o movimento iniciado por  uma das mais poderosas e organizadas categorias do país foi incapaz de atrair as simpatias da população, ao passo que, em 2013, o MPL incendiou o Brasil.
A resposta está na conjuntura. Não está na vontade dos dirigentes partidários, sindicais, dos movimentos sociais e nem mesmo do MPL – que foram tão pegos de surpresa quanto qualquer outro cidadão. Não está em manobras e articulações palacianas, nem da “direita” nem da “esquerda”.
Está no conjunto complexo, contraditório, profundo e extremamente poderoso que constitui o tecido das relações econômicas, sociais, políticas, ideológicas, sociais e morais de uma determinada época.
Não é só no Brasil que isso acontece, é óbvio. Dificilmente o vendedor ambulante tunisiano Ahmed Buazizi teria consciência de que ao atear fogo ao próprio corpo, em 17 de dezembro de 2010, estaria com isso incendiando o Oriente Médio.
Quantos Bouazizis fizeram gestos extremados, antes dele, sem com isso causar o menor distúrbio social? Porque justamente aquele gestou produziu a assim chamada “primavera árabe”? A resposta está na conjuntura.
A revolucionária Rosa Luxemburgo notou isso, ao comparar uma greve espontânea, organizada pelos trabalhadores de Batumi, na Geórgia (situada no Cáucaso), em 1902, com movimentos liderados, na mesma época, pelas poderosas centrais sindicais social-democratas na Alemanha: a greve dos trabalhadores de Batumi acabou desembocando, três anos depois, no Soviete de São Petersburgo, um dos grandes impulsionadores da Revolução Bolchevique de 1917; os movimentos na Alemanha mal foram notados.
Novamente: o que faz com que uma greve espontânea, numa região tão secundaria, do ponto de vista econômico, acabe sendo o motor de uma das mais importantes revoluções da história, enquanto movimentos operários organizados num país central para a economia capitalista não surta grandes efeitos? A própria Rosa explica: a resposta está na conjuntura.
Lula está certo, ao dizer que a juventude quer mais. O Programa Bolsa Família, o aumento real do salário mínimo, os programas de inclusão social (como o Luz para Todos), na esfera da educação (como o Prouni) e o da casa própria (Minha Casa Minha Vida) colocaram milhões de brasileiros na esfera do consumo, a qual foi artificialmente ampliada ao máximo com a concessão de créditos fáceis aos consumidores.
Milhões e milhões de brasileiros, antes relegados às margens do sistema econômico, agora aprenderam, com os mais variados graus de consciência ou intuição, que não têm que se conformar com a precariedade do sistema público de educação e saúde; que a corrupção pode e deve ser punida; que o sistema de transporte público é entregue a empresas privadas, embora fartamente subsidiado pelos impostos que todos pagam; que não há dinheiro para a segurança, para as escolas e para a saúde, mas há para imensos estádios de futebol.
O que Lula não diz em seu artigo é que boa parte dos problemas que hoje afligem a população brasileira também é resultado das políticas adotadas pelo seu governo e mantidas por aquela que preenche os contornos de seu espectro refratado no Planalto, a senhora Dilma Rousseff.
Lula não diz, por exemplo, que o programa Bolsa Família equivale a escassos 10% do total dos juros da dívida pública anualmente pagos ao capital financeiro; que os investimentos feitos pelo governo federal em educação e saúde são um dos menores do mundo, quando comparados ao PIB; que o governo adotou uma política irresponsável de promover o crescimento econômico com base no endividamento das famílias, que hoje enfrentam o fantasma da inadimplência; que, ideologicamente, o lulismo privilegiou uma concepção neoliberal que confunde “progresso social” com “enriquecimento dos indivíduos”, assim criando um abismo intransponível entre o eventual maior bem-estar que cada família passou a experimentar da porta de sua casa para dentro e o desastre absoluto verificado da porta para fora (insegurança, medo, poluição, caos urbano, guerras entre gangues, etc.); e que o”lulismo” transformou o PT e a CUT, símbolos das esperanças que mobilizaram milhões de brasileiros no final dos anos 70, em condutos forçados de negociatas do mercado persa chamado Congresso Nacional.
O Brasil chegou a um ponto de basta. Esse “ponto de basta”  apenas aparentemente se apresenta como que do nada, uma espécie de raio em céu azul.
Ele vem se anunciando há tempos, embora só retrospectivamente os sinais ganhem visibilidade adequada: no elevado índice de abstenção e voto nulo nas eleições de 2010; em revoltas explosivas, como a ocorrida no canteiro de obras na usina de Jirau (Amazônia), em março de 1911; nas inúmeras greves do funcionalismo público, nas revoltas em bairros da periferia, na longa paralisação que envolveu quase 100% das universidades federais em 2012, seguida pela greve dos professores do ensino municipal e estadual durante os primeiros meses de 2013.
Ninguém aguenta mais o inferno em que se transformou a vida nas grandes cidades, o espetáculo perdulário dos gastos públicos com a Copa, o descaso das autoridades com as pessoas que, diariamente, morrem ou padecem nas filas do SUS.
É esse sentimento de basta que explica aquilo que, de outra maneira, permaneceria incompreensível: quanto mais a polícia usa da violência, mais as pessoas vão às ruas. Seria de se esperar o oposto.
De fato, a polícia também foi surpreendida pela decisão da população. Ao contrário do que sempre aconteceu, a violência, por si só, mostrou-se incapaz de conter ou impedir os protestos. Trata-se de uma situação conjuntural em que os “de cima” – a burguesia e os seus representantes – já não conseguem governar como sempre governaram, ao passo que os “de baixo” – os trabalhadores, a juventude, a maioria da nação – já não suportam mais viver como sempre viveram.
Vladimir Ilitch Lênin assim descreve uma conjuntura que pode desembocar numa crise revolucionária.
Não se trata, aqui, de fazer futurologia. Potencialmente, o Brasil vive hoje uma situação conjuntural que pode desembocar numa crise revolucionária.


Isso aconteceu, por exemplo, na Argentina, no começo do século, quando os trabalhadores e a população expulsaram o presidente Fernando de La Rúa e sucedâneos a pontapés da Casa Rosada, aos gritos de “que se vayan todos”; e tudo para acabarem, melancolicamente, elegendo o peronista Néstor Kirchner, que ainda teve tempo de conduzir a sua mulher, a inefável Cristina, à chefia da Casa Rosada, antes de morrer.
O que acontecerá no Brasil? É claro que ninguém sabe. Mas é uma questão que preocupa, pelas dimensões que o país ocupa no cenário mundial.
O Brasil ostenta o 7º maior PIB do planeta (2,5 trilhões de dólares), é um dos pilares dos BRICs e peça importante de um edifício econômico cujas bases estão solapadas pela crise que se arrasta desde 2007.
Do ponto de vista do capital financeiro mundial, a conjuntura ideal seria aquela que lhe permitisse manter taxas de lucro astronômicas no Brasil (como as exibidas pelos bancos), numa situação de “ordem” e estabilidade social.
Se uma pequena ilhota como o Chipre (PIB de 25 bilhões) foi capaz de colocar o mundo em polvorosa – tamanha a fragilidade da Zona do Euro -, imagine o que acontecerá se o “gigante” começar a dar passos de anão.
Mas rimar paraíso financeiro com ordem social não será mais possível no Brasil. O capital não pode abrir mão da taxa de lucros, ainda que isso signifique pressionar o governo para arrancar da população as poucas conquistas sociais já alcançadas (por exemplo, com investimentos ainda menores nos setores de educação e saúde, para assegurar a remuneração do capital, por meio do superávit primário).
Dilma está entre a cruz e a espada. Para atender ao capital, terá que enfrentar a população nas ruas; para atender às demandas da população, terá que romper, ou pelo menos resistir ao capital.
Os prazos são cada vez mais curtos, como mostra a valorização crescente do dólar (mais de 10% em dois meses), e com ela o preço do petróleo importado, dos insumos agrícolas e das máquinas que empregam tecnologia de ponta, com todas as consequências para a vida.
Até quando o governo federal conseguirá manobrar para impedir que a população sinta em cheio os efeitos da crise econômica?
Dilma procura “enquadrar” o movimento das ruas, canalizando as energias para as vias institucionais, configuradas pelas propostas de Constituinte (que teve curtíssima vida) e de plebiscito sobre a reforma política (incapaz, até o momento, de agregar um núcleo capaz de lhe dar forma concreta e eficaz).
Claro que a “oposição de direita” (aqui entendida como os patéticos senhores agregados no PSDB e redondezas) tenta bombardear qualquer proposta oriunda do Planalto.
A “esquerda”, ou o que sobrou dela, agrupada principalmente no PSOL, mostra-se impotente para apontar alternativas.
Todos os partidos estão de olho nas eleições presidenciais de 2014, e jogarão as suas fichas para colher os máximos de dividendos da crise.
A “direita”, que nada tem a propor, tenta alimentar a erosão da base governista, ao passo que faz o elogio da “ordem” nas manifestações (novamente, a Rede Globo, secundada por emissoras de menor importância, é providencial  na tarefa de criar um consenso nacional segundo a qual só é legítima a manifestação que respeita estritamente os limites da propriedade privada e o respeito supersticioso à “autoridade constituída”).
A mediocridade da oposição “de direita” e a impotência da “esquerda” ainda dão fôlego ao governo Dilma, que, claramente, oscila ao sabor dos acontecimentos.
Lula acompanha à distância a evolução da conjuntura. Assiste de camarote à “fritura” de Dilma.
Não por acaso, escolheu o NYT, porta-voz do establishment financeiro liberal dos Estados Unidos, para dar o seu recado: ele ainda faz parte do jogo, ainda é capaz de mover as peças, ainda pode ser o Bonaparte que surge a cavalo, no alto do Planalto, para tentar recompor a confiança da juventude e dos trabalhadores na forma partidária da representação política.
Em seu artigo, ele acena com a necessidade de uma “transformação profunda do PT”.
O que isso significa, talvez nem o próprio Lula saiba. Ainda.

Texto originalmente publicado em Viomundo

terça-feira, 16 de julho de 2013

Sobre o aquecimento da luta de classes e as “credenciais” da esquerda

por Silvia Beatriz Adoue




As mobilizações do último período revelam, entre outras coisas, que as “credenciais” dos partidos e movimentos criados na etapa anterior de lutas não são reconhecidas pela nova geração das classes trabalhadoras. A ruptura da continuidade das lutas dos 80 e primeira metade dos 90 faz-se sentir no aquecimento das lutas durante o último ano, que tiveram a expressão mais espetaculosa nas manifestação contra os aumentos das passagens e contra os gastos da Copa. As organizações criadas na outra etapa, e que permaneciam em compasso de espera, olham para este reacender das lutas com apreensão. Reclamam da despolitização ou a desorganização das novas camadas e olham para elas com uma desconfiança só superada pela desconfiança dessas novas camadas com relação às organizações tradicionais. A confiança se constrói na luta comum, não é automática, pelo programa, pelo discurso e nem pela cor das bandeiras.
Aliás, essa desconfiança precisa ser percebida como saudável nas novas e também nas velhas gerações, depois do comprometimento dos governos do Partido dos Trabalhadores, partido surgido nas lutas da etapa anterior, com o projeto de expansão do capital no que se deu em chamar: neo-desenvolvimentismo. Mas mesmo partidos e movimentos organizados que não deixaram de lutar nesta última etapa, não se tornaram referência para esta grande massa de trabalhadores e trabalhadoras que agora se lança ao conflito. As “credenciais” não servem. É necessário estarem presentes nas lutas atuais sem partir do pressuposto de que serão dirigidas por esses partidos e movimentos organizados, o que inclui as organizações sindicais. As mobilizações de dia 11 de julho são uma clara demonstração disso. Rompeu-se o vínculo orgânico das organizações com a grande massa. O que é compreensível, uma vez que houve um arrefecimento das lutas todos esses anos. Alguns confundem organicidade com organização e, inclusive, organização com aparato.
De pouco serve o aparato se não houver organicidade. É preciso reconstruí-la. E isso não será feito sem enraizamento no cotidiano das classes trabalhadoras e nas suas novas lutas. É uma grande insensibilidade achar que a frente única da classe trabalhadora vai se dar pelo simples acordo entre as organizações pela retomada das velhas bandeiras. Da pauta amarelada das classes trabalhadoras. A pauta só pode ser reconstruída junto às novas gerações, a partir das lutas atuais. A restituição das pautas, independentemente das lutas, só aumenta o estranhamento entre a esquerda organizada e essas novas gerações. Para se colocar pautas mais gerais e audaciosas é preciso uma organização que só pode avançar a partir de lutas, e conquistas, mais imediatas, que vão alimentar a confiança nas próprias forças e nas novas articulações da classe. Isso está colocado para todos. Alguns já perceberam, outros ainda precisam “acordar” para as novas tarefas.

Silvia Beatriz Adoue é professora da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus Araraquara.

Texto originalmente publicado em 15/07/2013 no Brasil de Fato.