"As ruas fervem em todo o Brasil. Jovens, e outros nem tanto, ocupam as cidades que o capital teima em tentar monopolizar para seu gozo exclusivo, exigindo transportes mais baratos e, cada vez mais, direito à livre manifestação. Com muito vinagre e fogo no lixão urbano, os manifestantes rebelados afrontam as bombas de gás, balas de borracha, e outras nem tanto, da repressão policial. Nos (tele)jornais, querem dirigir o que não puderam evitar, apresentando um vilão fantasmático: “a corrupção!”, para tentar desviar o foco da materialidade das contradições sociais que emergem com as centenas de milhares de pessoas nas ruas. Para eles, há os pacíficos e os vândalos. Bandeiras nacionais e hinos patrióticos representam a “verdadeira cidadania”, os partidos de esquerda seriam os “aproveitadores”. A linha é tênue, e varia conforme os humores dos manifestantes e as “sondagens de opinião”. Há quem, nas próprias manifestações, reproduza valores desse esforço ideológico para direcionar as mobilizações para a zona de conforto da classe dominante. Mas, os jornalistas dos monopólios da comunicação precisam se refugiar nos helicópteros e estúdios, porque sabem que a maioria ali não acredita no que dizem e nas ruas podem também ser brindados com o escracho dos que lutam. Lutam pelo que? O que explica a explosividade e a rapidez surpreendentemente desses acontecimentos? Aonde podem chegar? Qual o seu potencial? E os limites que precisam ultrapassar?" - Com esta breve introdução iniciamos nosso blog em junho de 2013. A luta continua e por isso este espaço continua aberto às analises!

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

A Direita, o Rolezinho e o Caviar

Por Roberto Moll


Nos últimos dias, jornais e articulistas identificados, abertamente ou não, com a direita se apressaram em revelar que o fenômeno do rolezinho não tem nada de político e, muito menos, de esquerda. As notícias e as colunas vieram recheadas com falas de participantes do rolezinho, que desmentiam qualquer ação de caráter político e reafirmavam o desejo de consumo e ostentação, identificados com um segmento do funk. Portanto, os jovens do rolezinho estariam afinados com o capitalismo, mas de forma bárbara e, ao contrário do que pensa a esquerda, não tem nenhuma questão racial ou social em seus atos. Nas entrelinhas, o que faltaria a esses jovens seria um processo civilizador, que não pode prescindir do aparato policial e da adequação ao espaço privado, sacralizado. Assim, arolezinhoação da policial e dos shoppings é quase educativa e não discriminatória. Afinal, nenhum 
shopping nunca proibiu a entrada de ninguém, independente do dinheiro que tem no bolso ou da cor. Ainda nesta lógica, o problema é que uma parte da esquerda, oportunista, quer direcionar os rolezinhos para um caminho político e criou toda celeuma que envolve a questão. Esta esquerda, permeada por sociólogos e outros intelectuais, supostamente, desconhece a realidade dos integrantes do rolezinho porque está confinada aos apartamentos nas zonas mais ricas da cidade, consome do bom e do melhor nos shoppings e escreve no facebook diretamente de Iphones e bebendo starbucks.

Não há dúvidas de que o rolezinho não é um movimento organizado de anti-capitalistas e de esquerda. Nem é preciso ouvir o funk ostentação para concluir isso. Contudo, dizer que não é um ato político é outra coisa. Ao menos se considerarmos como atos políticos todo os atos que buscam interferir, pela manutenção ou transformação, na forma como as relações sociais se estabelecem. Por isso, o rolezinho é um grito político, daqueles que são frequentemente excluídos dos espaços de consumo e dos desejos consumistas, que, se realizados, “agregam valor” na sociedade pautada pelo capitalismo do novo milênio. De certo, nenhum shopping nunca deve ter proibido a entrada de negros ou pobres, ainda que alguns, como um carioca muito conhecido, tenha tentado impor um código de vestimenta nas babás, negras e pobres. Isto nunca aconteceu porque, felizmente, embora sejam negócios privados, a lei brasileira impede que estabelecimentos comerciais abertos ao público discriminem a entrada de qualquer tipo de pessoa. Entretanto, a exclusão do espaço não acontece apenas em sua forma física, mas através da violência simbólica nos olhares e em cada passo que os seguranças dão para seguir qualquer um que, segundo os padrões da civilização de consumo, não tem  a condição e o direito de estar naquele lugar. É assim, muito anterior as proibições legais do rolezinho.
rolezao
Rolezão organizado pelo Movimento dos Sem Teto.
Como as próprias falas dos jovens deixam transparecer, o que leva os jovens a “causar” nos shoppings é a vontade de reafirmar sua existência como sujeito ativo em uma sociedade que valoriza o consumo. Em outras palavras, como consumidor de bens e lazer. Esta necessidade só existe na medida em que a exclusão, por discriminação e por falta de outros espaços, é a norma. O que impulsiona os jovens para o rolezinho é a mesma força que movem outros jovens para esquerda: a percepção de que vivem em uma sociedade na qual a maioria é excluída das benesses do capitalismo enquanto a minoria goza de privilégios. Os articulistas anti-esquerda não conseguem ver esta identificação e classificam a possível relação entre os movimentos sociais e o rolézinho como oportunismo. Mas, se os movimentos de esquerda não se envolvessem seriam acusados de  negligência ou algum tipo de elitismo. Os defensores da direita civilizadora não percebem que os movimentos sociais de esquerda fazem política, como deve ser, e não a partir de gabinetes institucionais ou de propaganda, modos de operar tão criticados nas manifestações do ano passado.
Sobra o caviar. Quer dizer, a acusação de que há contradição entre apoiar o rolezinho como manifestação política voltada para inclusão no espaço consumista e opressor – o Shopping – e a própria esquerda, que frequenta, tranquilamente, o mesmo espaço sem deixar de consumir. É a famosa esquerda caviar, que virou tema de livro a fim de mostrar que muitos sujeitos identificados com o fim da desigualdade não abrem mão da boa vida no Leblon, na Europa e até nos Estados Unidos. Os defensores de tal argumento são incapazes de perceber ou fingem não perceber que ser de esquerda não é ser contra o desenvolvimento técnico, a produção e o consumo. Mais do que isso, não sabem ou fingem não saber que desenvolvimento, produção e consumo não são exclusividade do capitalismo. É óbvio ululante, mas não custa lembrar que antes do capitalismo, os homens desenvolveram máquinas, produziram e consumiram, primeiro aquilo que é indispensável a sua vida material e depois aquilo que dá conforto e alivia o peso do próprio esforço de produção.  Ademais, o próprio modo de produção comunista realmente existente impulsionou o desenvolvimento, a produção e o consumo, ainda que controlado e planejado. Se a esquerda entra e contradição ao consumir Iphones porque é resultado do capitalismo, a direita capitalista deveria abandonar a agricultura, que não é invenção do capitalismo ou qualquer outra técnica produção anterior ao capitalismo ou desenvolvidas em países do comunismo realmente existente.
Desenvolver técnicas, produzir e consumir são atividades inexoráveis da vida dos seres humanos. Quer dizer, quem é de esquerda ou de direita precisa de desenvolver técnicas, produzir e consumir, sobretudo para viver bem em uma sociedade capitalista. Ser de esquerda não é deixar de desenvolver, produzir ou consumir. É lutar pela socialização do desenvolvimento, da produção e do consumo. Certamente, impõe limites ao consumismo que “agrega valor ao camarote”, mas não ao “consumo que agrega valor a vida”. Para aqueles que não entendem isso, a esquerda não tem lugar: ou cultua a, suposta, “pobreza cubana” ou é “caviar”. Ademais, a própria produção de um volume sobre a esquerda caviar com argumentos tão rasteiros revela a debilidade do mercado editorial que patrocina publicação deste tipo enquanto estudos sérios, de pesquisadores de esquerda e de direita, ou romances de jovens escritores enfrentam imensa dificuldade de produção. Mas, este é outro tema. Por fim, os mais cínicos dirão que os rolézinhos são desculpas, de pobres e esquerdistas, para roubar e vandalizar os shoppings. Não parece ser tônica. As próprias administradoras dos shoppings negam qualquer dano grave. Se existe qualquer infração, a polícia deve investigar e punir, na medida da lei, os infratores. Bombas, balas de borracha e proibições só demonstram o preconceito – estabelecido na ideia de que qualquer aglomeração de pobres e negros é uma ameaça – e a incapacidade da polícia, que ao invés de punir o infrator pune qualquer um com “aparência suspeita”.
rolezinho
*Roberto Moll é professor, historiador e analista de Relações Internacionais.
Texto originalmente publicado em http://capitalismoemdesencanto.wordpress.com/2014/01/20/a-direita-o-rolezinho-e-o-caviar/

sábado, 18 de janeiro de 2014

Rosa Parks em Itaquera

Por Ruy Braga




No dia 1º de dezembro de 1955, no centro da cidade de Montgomery, estado do Alabama, Rosa Parks, uma costureira de 42 anos, subiu em um ônibus a fim de voltar pra casa após mais um dia de trabalho. Ela acomodou-se em um assento para pessoas “de cor” e após três paradas, as quatro primeiras fileiras reservadas aos brancos já estavam lotadas. O motorista James Blake mandou que ela e os outros três passageiros negros que estavam ao seu lado se levantassem para dar lugar aos brancos que entravam.
Nada de mais, se tivermos em conta que no Alabama, assim como os outros estados do sul dos Estados Unidos, vigiam as leis segregacionistas de Jim Crow que exigiam que escolas e locais públicos, incluindo trens e ônibus, tivessem instalações separadas para brancos e negros. Na prática, os negros, mesmo que pudessem pagar, simplesmente não podiam frequentar os mesmos restaurantes ou lojas, usar os mesmos banheiros ou beber água nos mesmos bebedouros que os brancos.
Contraditoriamente, os Estados Unidos viviam o auge do chamado fordismo, modelo de desenvolvimento que integrou produção e consumo de massa, elevou o padrão material da classe trabalhadora estadunidense e absorveu parte dos conflitos classistas por meio de políticas sociais. Em cidades industriais como Chicago ou Detroit, por exemplo, os trabalhadores negros recém-chegados do sul formavam a espinha dorsal do orgulhoso operariado fordista. Apesar da persistente discriminação no acesso às qualificações industriais mais complexas, eles eram sindicalizados, recebiam altos salários e começavam a enviar seus filhos para as universidades.
Seguindo os avanços econômicos, uma onda politicamente progressista insinuava-se nos Estados Unidos. Em 1954, a segregação escolar promovida pelo Estado havia sido declarada inconstitucional pela Suprema Corte americana. O espírito do tempo favorecia atitudes ousadas e Rosa Parks recusou-se a ceder seu lugar no ônibus. O motorista chamou a polícia que a prendeu, deflagrando, assim, o mais importante movimento social da história recente dos Estados Unidos.[1]
O movimento dos direitos civis dos negros, uma campanha nacional em defesa da igualdade racial que contou com a participação entusiasmada de milhares de ativistas, negros e brancos, notabilizou-se por seus métodos não-violentos. A mecânica era simples: um jovem negro entrava, por exemplo, em uma lanchonete e pedia algo. O proprietário branco recusava-se a atendê-lo. Após uma sessão de gritos, insultos e humilhações, alguém tentava o retirar à força. O jovem, então, sentava-se no chão. Ao chegar, a polícia prendia-o por distúrbio da ordem pública. Em seguida, os demais ativistas iniciavam uma campanha para libertá-lo da prisão. Isto não apenas fortalecia a repercussão da propaganda igualitarista pelas cidades como atraía novos militantes.
A eficiência deste método revela o nível da opressão que vitimava os negros nos Estados Unidos. Desde que não estivesse lá a trabalho, a simples presença de um negro em uma lanchonete para brancos já era considerada uma ofensa suficientemente grave para justificar a violência policial. O curioso é que, a rigor, um jovem negro que entrasse em uma loja em Montgomery e pedisse para ser atendido, não cometia crime algum. Afinal, as leis segregacionistas referiam-se às escolas e ao sistema de transporte. Daí a necessidade de prendê-los por “perturbação da ordem”. Ou seja, o fundamento da prisão era simplesmente o racismo.
Toda vez que leio ou assisto alguma notícia a respeito dos atuais “rolezinhos” em shoppings paulistanos, lembro-me imediatemente da luta dos negros nos Estados Unidos. De fato, há algo da altivez e da bravura de Rosa Parks na atitude irreverente e desafiadora destes jovens das periferias. A “primeira dama dos direitos civis”, como ficou conhecida, parece ter se mudado pra Itaquera. Da mesma maneira, sinto o cheiro fétido das leis de Jim Crow na repressão dos empresários e da PM aos encontros organizados pelo Facebook.
Ao fim e ao cabo, que crime estes jovens cometeram? O que pode justificar que eles sejam barrados nas portas dos centros comerciais, revistados, imobilizados, ameaçados, agredidos e, finalmente, presos pela PM? As razões só podem ser o racismo e o ódio de classe que transformam a vida dos moradores das periferias em um verdadeiro calvário.
Na realidade, estes encontros condensam aspectos conflitantes do modelo de (sub)desenvolvimento pilotado pela burocracia lulista. Por um lado, temos a desconcentração da renda entre os que vivem dos rendimentos do trabalho cujo resultado foi a ampliação do acesso dos trabalhadores pobres e precarizados, especialmente, os mais jovens, ao crédito.
Apesar da deterioração das condições de trabalho e da dura realidade dos baixos salários, a base da pirâmide da renda composta majoritariamente por negros e não-brancos progrediu mais rapidamente que os estratos médios, alterando a norma social de consumo. Atualmente, jovens pobres conseguem comprar um “Mizunão” de mil reais em várias parcelas: “Por enquanto a ostentação está só na imaginação. Só tenho um Mizuno, que custou R$ 1000. Eu paguei em prestação, porque na lata (à vista) não é fácil não” (Anderson da Silva, 18 anos, ‘Rolezinho’ nas palavras de quem vai15/01/2014, G1). O tênis é um signo distintivo de trabalho duro e de progresso material calçado por uma moçada com um pouco mais de dinheiro no bolso e querendo se divertir. Aliás, estes jovens cresceram enquanto os centros comerciais das periferias eram construídos, daí sua intimidade com este ambiente.
Por outro, o atual modelo baseia-se em um tipo de acumulação por desapossamento que privatizou o solo urbano ao transformá-lo em uma inesgotável fonte de superlucros capitalizados pelos bancos e pelas construtoras.[2] Além disso, esta verdadeira financeirização da terra está gentrificando bairros populares ao deslocar estes mesmos grupos recém-promovidos ao consumo para regiões mais distantes.[3]
Do movimento destas placas tectônicas surgiu o recente terremoto que assusta empresários e autoridades governamentais. Os desejos de lazer e de consumo de milhões de jovens recém-chegados ao mercado de trabalho choca-se com a inexistência de espaços públicos nas periferias e com instituições plasmadas por uma soma de racismo e ódio de classe. A acumulação por desapossamento aprofunda a segregação espacial, exacerbando a discriminação racial:
“Aqui na nossa quebrada (em Guaianazes) não tem muita opção de lazer para os jovens. Não tem uma quadra da hora, uma praça pra gente se reunir, não tem nada” (Daniel de Souza, 18 anos).
“O maior defeito do Jardim Nazaré é não ter espaço para o lazer. Falta lugar pra gente se encostar e ninguém discriminar. Se a gente fica na praça à noite, eles vão achar que a gente está usando drogas” (Caique Vinicius, 19 anos).
Assim, importa menos a aparente despolitização dos encontros do que a revelação da face racista do atual modelo de (sub)desenvolvimento:
“A gente foi pra se divertir, ficar com as meninas e conhecer outras pessoas. Mas a polícia chegou com cassetete. (…). Chegou com agressão pra gente tudo ir embora, bala de borracha, gás. Eu achei errado. Se fosse numa conversa como gente grande, agente poderia chegar num acordo, colocar um lugar pra fazer esses ‘rolês’” (Lucas Lima, 17 anos).
Diante deste tipo de experiência, a politização dos rolezinhos não deve tardar. A propósito, o simples fato de ir ao shopping em grupo já é um ato inadvertidamente político. Afinal, esses jovens estão se reapropriando de espaços que lhes foram espoliados pela privatização da cidade. Na realidade, observamos um desdobramento previsível do processo aberto em junho passado e enraizado no atual esgotamento do ciclo de crescimento com certa redistribuição de renda. A desaceleração econômica tem ajudado a precipitar a transformação da inquietação social das periferias em indignação com a maneira deplorável como os jovens negros são tratados no país.
No final do ano, esta juventude decidiu testar os limites do atual modelo, esbarrando acidentalmente na tática da não-violência que os negros estadunidenses empregaram nos anos 1950 e 1960. Sabemos como a resiliência do racismo na América – expressa, por exemplo, no assassinato de Martin Luther King – ajudou a radicalizar parte do movimento dos direitos civis e a criar o partido Black Panther.[4] Hoje, ainda é possível identificar a serenidade de Rosa Parks nos semblantes dos presos em Itaquera. Enfim, eles desejam apenas ser encarados com dignidade, nem que para isso ostentem roupas de marca e acessórios caros. Amanhã, contudo, pode ser que o fantasma de Huey P. Newton seja visto dando um rolezinho pela Faria Lima.

[1] Em sua autobiografia, Rosa Parks diz curiosamente que, mesmo décadas após o boicote aos ônibus de Montgomery, movimento que surgiu por conta de seu ato de insubmissão, ainda muitos americanos acreditavam que ela não se levantara, pois estava muito cansada após um dia extenuante de trabalho. No entanto, a atitude de Rosa Parks foi planejada minuciosamente pela Associação Nacional pelo Progresso das Pessoas de Cor (NAACP), uma organização criada em 1909 pelo sociólogo negro W.E.B. Du Bois, autor de clássicos das ciências sociais estadunidenses, tais como The Study of the Negro Problems (1898), The Philadelphia Negro (1899), The Souls of Black Folk (1903) e Black Reconstruction in America (1935). Para mais detalhes, ver Rosa Parks (com Jim Haskins), My Story (Nova Iorque, Puffin, 1999).
[2] Para mais detalhes sobre o conceito de “acumulação por desapossamento”, ver David Harvey, O novo imperialismo (São Paulo, Loyola, 2004).
[3] Veja o caso de Itaquera, por exemplo, onde a construção do estádio do Corinthians e os investimentos em mobilidade urbana decorrentes da copa do mundo inflacionaram os aluguéis e os valores dos serviços na região. Para mais detalhes, ver Luiz Henrique de Toledo, “Quase lá: a copa do mundo no Itaquerão e os impactos de um megaevento na sociabilidade torcedora”. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 19, n. 40, p. 149-184, jul./dez. 2013.
[4] Posso apostar que outro “black” deverá aparecer nos shoppings da cidade caso a repressão aos rolezinhos insista em perdurar.


Publicado em http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=1922


quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Não é só pelos bailes funks

“Rolezinhos” surgem em meio a proibições na periferia; ao se verem discriminados, os meninos cheios de gírias e sonhos moldados pela ostentação criaram um debate sobre cidadania
por Samantha Maia — publicado 14/01/2014 15:02, última modificação 15/01/2014 08:46

Em vez de manifestação, é encontro. No lugar da passeata, tem “rolezinho”. A mobilização de jovens da periferia de São Paulo em shoppings foi uma forma encontrada para chamar a atenção sobre a sua realidade. Faltava apenas a sanção do prefeito paulistano Fernando Haddad (PT) para que a proibição a bailes funks em logradouros públicos, independentemente do horário, entrasse em vigor na capital. O projeto - o primeiro de autoria do vereador Conte Lopes (PTB), ex-comandante da Rota - passou pela aprovação da Câmara sem grandes dificuldades em 2013. Parecia não existir oposição.
Eis que no dia 7 de dezembro daquele ano, o shopping Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, foi surpreendido pela presença de cerca de 6 mil garotos e garotas do funk. Na página da organização do evento no Facebook, adolescentes na faixa dos 15 a 20 anos comentavam que era para "tirar umas fotos", "dar uns beijos", "rever os amigos". Não se sabe exatamente se a proibição aos bailes foi o verdadeiro estopim do movimento. O principal objetivo manifestado pelos milhares de jovens era se divertir.
O número elevado de pessoas causou tumulto. A presença massiva de garotos da periferia, em sua maioria negros, causou mal estar no centro comercial. Houve medo dos frequentadores diante de um grupo antes escondido nos rincões com suas músicas proibidas. A primeira notícia divulgada, a partir de fontes oficiais - leia-se, a polícia -, era de que se tratava de um arrastão. Na tevê, as cenas eram de correria. No pé das reportagens, a observação da administração do shopping passava batido: não houve arrastão e os furtos eram casos isolados.
A repercussão negativa levou os participantes do “rolezinho” a uma discussão para além do que o encontro pretendia. Dentre os questionamentos levantados pelos funkeiros nas redes sociais estavam o porquê não serem bem-vindos ao shopping. Por que a polícia agia de forma hostil sem que eles fizessem algo errado? Mais: como eles poderiam mostrar que tinham o direito de entrar no shopping?
Além de atentar para o problema mais premente, o da proibição do baile funk, a galera dos “rolezinhos” jogou luz sobre o preconceito de classe e o racismo na cidade de São Paulo.
A invasão do templo do consumo por habitantes de guetos é uma subversão da ordem higienista. Ao ocupar aquele espaço, ultrapassaram uma das barreiras mais sérias da estrutura social urbana nas grandes cidades brasileiras: a da segurança e da exclusividade de ser um consumidor em um shopping center.
Não faltaram xingamentos aos “rolezeiros”: bandidinhos, maloqueiros, vagabundos, gente que não tem mais o que fazer. Deveriam, segundo indignados frequentadores de shoppings, trabalhar e aprender a falar igual gente, dentre outras sugestões nada amigáveis. Muitos jovens já estão, no entanto, no mercado de trabalho, a desempenhar funções mal remuneradas, na base da pirâmide social.
Ao se verem discriminados, os meninos e meninas cheios de gírias e com sonhos moldados pela ostentação do consumo envolveram-se em um debate valioso sobre cidadania, seus direitos e seu papel na sociedade. Mesmo que sem perceber, faziam política. Como um dos inimigos apontados, surge a mídia, taxada pelos “rolezeiros” de “mentirosa” – que, segundo comentários de participantes nas redes sociais, estaria em busca da audiência a qualquer custo ao retratar os eventos de maneira pejorativa.
O tom dos encontros seguintes foi o de provar que não eram o que haviam pintado sobre eles. Um dos organizadores do segundo “rolezinho”, no shopping Internacional de Guarulhos, alertava para a situação desfavorável em seu perfil no Facebook: "Temos que manter a disciplina sem baderna, sem drogas, sem bebidas alcoólicas. Nós vamos pra curtir. Se quiser fazer essas coisas, não estará participando do encontro. Faça fora do shopping porque estão todos voltados a nós: a tevê e os jornais estão olhando pra nós. Se nós fizermos baderna não vamos ter moral para pedir nossos direitos e vamos ser passados como marginais". No “rolezinho” realizado no dia 14 de dezembro houve novamente confusão e 23 pessoas foram levadas até a delegacia sem justificativa.
Outros eventos semelhantes ocorreram sob a repressão policial e críticas da sociedade que não diferem das apontadas a outras manifestações. "A gente não tem mais sossego nem no shopping", disse uma dona de casa entrevistada.
A lógica é clara. Que as pessoas tenham problemas para resolver, finge-se entender, desde que não atrapalhem o trânsito ou o passeio no shopping.
No dia 8 de janeiro, o prefeito Haddad vetou na íntegra o projeto de lei que proíbe a utilização de vias públicas para realização de bailes funk. A decisão não apaziguou, porém, os ânimos e outros “rolezinhos” continuam em alta. Agora os jovens funkeiros querem mais espaços de lazer e respeito do seu direito de ir e vir. Como uma paródia dos 20 centavos da tarifa de ônibus, estopim das manifestações de junho, pode-se dizer hoje que “não é só pelos bailes funks”. O debate levantado pelos “rolezinhos” diz respeito a toda a sociedade.